Algumas reflexões sobre o percurso dos atuais Advogados-Estagiários

Há três anos o Conselho Geral da OA encetou uma alteração ao regime de estágio quer definindo novos critérios de acesso quer restruturando o modelo pedagógico utilizado.

No que ao primeiro diz respeito, a alteração veio a revelar-se, no mínimo, confusa e mais geradora de conflitos do que ordenadora de um momento essencial no percurso de qualquer advogado.

Alicerçando os seus argumentos nas atribuições primárias da Ordem e com base na intuição de que a massificação do ensino do Direito em Portugal teve como consequência direta e necessária a diminuição da qualidade dos licenciados, a OA, indiretamente, chamou a si a competência para controlar os curricula das Faculdades de Direito.

Na verdade, estamos em crer que a proliferação de cursos de direito bem como as dificuldades do mercado que afetam igualmente as Universidade poderão ter reflexos no número e qualidade dos novos licenciados. Todavia, é duvidoso que essa possa e deva ser uma preocupação imediata da OA.

Na promoção da dignidade e prestígio da profissão, entendemos que a Ordem não deve deixar de assegurar um nível de qualidade daqueles que admite ao seu seio. Mas deverá fazê-lo para esse fim e não para controlar o ensino do direito nas nossas faculdades.

Não se trata de mero jogo de palavras: a substancial diferença de perspetiva leva-nos a justificar, por exemplo, que mais do que distinguir formas de licenciatura (pré ou pós Bolonha, com ou sem mestrado integrado), devemos estabelecer conhecimentos mínimos do Direito que permitam o acesso à profissão.

Ora, com aqueles fundamentos, o CG, para fazer face à degradação do ensino veio a introduzir novos critérios de admissão a estágio na OA, introduzindo, designadamente, um exame nacional prévio para os licenciados com menos de cinco anos de formação académica. Por outro lado, com a pretensão de incrementar a qualidade dos novos advogados, o regulamento de estágio passou a prever, então, o impedimento de reinscrição em novo curso de estágio, pelo período de três anos, a todos os que reprovassem em teste de repetição.

Como o tempo veio a comprovar, a implementação de tais medidas, de forma imediata e sem qualquer período de transição, veio a ser sustada pelos Tribunais que as consideraram inconstitucionais, por violação, nomeadamente, das disposições conjugadas dos artigos 47° n° 1 e 165° n° 1, alínea b) da Constituição. Ou seja, porque não competiria à OA, por si só e sem mais, alterar os pressupostos de acesso à profissão.

Ao nível da restruturação pedagógica do estágio, o novo regulamento de estágio aprovado em 2009 assumiu duas importantes preposições: um aprofundamento das obrigações do patrono, o qual, mais do que os centros de estágio, deverão funcionar como principal meio de transmissão dos ensinamentos necessários à futura prática profissional e, por outro lado, uma renovação dos formadores e métodos de formação utilizados na primeira fase do estágio, promovendo, aqui, a utilização do método do caso.

Não por mera coincidência, em 2010 não se iniciou qualquer curso de estágio; e, na prática, em 2011 apenas funcionou um único curso1.

É neste contexto que poderemos melhor entender o sentimento de incerteza e insegurança que paira sobre todos os que, nos últimos anos, aspiram a aceder à nobre profissão de advogado.
Se nos propomos a ouvir, os jovens estagiários são quase unânimes ao apontar três principais grupos de preocupações:
1. A relação com a Ordem;
2. A qualidade e duração do estágio;
3. A futura inserção no mercado de trabalho.

Propomo-nos, por isso, refletir um pouco sobre cada.

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1 O 1º Curso de Estágio de 2011 inicia-se em março desse ano, e o 2º Curso de Estágio iniciou-se, apenas formalmente, em 28 de dezembro desse ano, tendo frequência nos primeiros meses de 2012. Consequentemente, em 2012 apenas é iniciado um único curso de estágio, o qual, aliás, só terminará já em 2013. 


A relação com a Ordem


O primeiro grupo de preocupações dos jovens estagiários prende-se com as interações que foram experimentando com as estruturas da OA, as quais, por vezes, tem vindo provocar uma certa insegurança e incerteza no que respeita aos requisitos e procedimentos exigidos.

Certamente resultado dos avanços e recuos da regulamentação dos últimos anos2, os Advogados-Estagiários ora são confrontados com novos procedimentos e novas obrigações emolumentares, ora são afetados pelas indecisões e indefinições resultantes das próprias estruturas internas da Ordem.

Entendemos que a mudança do modelo de estágio além de necessária deve ser entendida como natural. Mas a mudança deve servir para que o modelo seja mais adequado às exigências dos novos tempos, às pessoas a que se destinam e nunca perdendo de vista as verdadeiras atribuições da Ordem.

Não se deve, nesta parte, ter a pretensão de assegurar nada mais do que a qualidade e prestígio da profissão.

A advocacia não pode continuar a ser o refugo daqueles que não almejaram aceder a outra profissão jurídica e que, tantas vezes sem as necessárias vocação e vontade, vem inscrever-se nos cursos de estágio da OA.

Por isso entendemos que as condições de acesso à advocacia deverão ser equiparadas às exigências de acesso a outras profissões, acauteladas as especificidades de cada uma.

Consideramos, pois, que os candidatos ao estágio na OA devem demonstrar que detém as competências e os conhecimentos mínimos para o efeito, o que deve ser avaliado através de um exame inicial.
Não obstante, na implementação desta solução, necessariamente através da intervenção do legislador nacional, deverão ser acauteladas expetativas adquiridas pelos licenciados em Direito, promovendo-se um início de vigência cuidado e ao longo de um período de transição adequado.

No que diz respeito às estruturas da Ordem sobre as quais impendem as funções de acompanhamento do estágio, designadamente o Conselho Geral (CG), a Comissão Nacional de Estágio e Formação (CNEF), a Comissão Nacional de Avaliação (CNA) e os Conselhos de Estágio (CE) distritais, temos muitas dúvidas quanto à bondade e eficiência do seu enquadramento regulamentar e operacional.

Na verdade, quando não surgem questões relativas às atribuições de cada uma, amiúde os jovens estagiários queixam-se das dificuldades de comunicação entre elas e até da capacidade de resposta ao desenrolar do período de estágio.

Ora são os cursos de estágio que demoram a iniciar-se, ou são limitados a uma edição por ano; ora são os exames que apresentam incongruências com os programas de formação; ora são as correções e decisões de recurso que demoram em revelar-se.

Aceitamos como válida a afirmação de que toda a formação terá de implicar uma avaliação. Mas a função de avaliação não pode ser alheia ao conteúdo e ao modo como decorre a formação em concreto.

Entendemos que serão faces de uma mesma moeda, não vislumbrando especial vantagem na sua dispersão por duas distintas comissões (CNEF e CNA).

A sua concentração num único organismo, além das vantagens na racionalização dos recursos humanos e materiais, poderia traduzir-se ainda em vantagens pedagógicas relevantes que permitiriam calibrar alguns dos desvios e desconformidades apontados pelos Estagiários.

Acresce que um tal organismo deveria assumir como principal tarefa a regulamentação e o planeamento geral de todos os momentos de formação e de avaliação, deixando aos CE distritais as tarefas mais operacionais.

Concretizando melhor, julgo que à comissão de formação e avaliação (única, portanto) competiria, eventualmente entre outras:
a) Definir o número e o momento de realização dos cursos de estágio
b) Decidir as áreas de formação e respetivos conteúdos
c) Estipular as competências mínimas exigíveis aos formadores e avaliadores
d) Promover programas pedagógicos de acompanhamento
e) Estipular as competências mínimas exigíveis aos candidatos para acederem e progredirem no curso de estágio
f) Determinar os conteúdos dos exames e respetivas grelhas de correção
g) Assegurar a qualidade, uniformidade e isenção das avaliações dos exames, coordenando de forma efetiva todos os avaliadores.

Sobretudo, caberia a uma tal entidade programar e planificar integralmente cada curso de estágio, em estreita colaboração com as disponibilidades de meios dos CE.

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2Traduzidos, sobretudo, na aprovação do Regulamento de 2009 e a subsequente declaração de inconstitucionalidade de várias das suas normas, o que levou, além do mais, à anulação dos resultados do primeiro exame de admissão ensaiado pela OA.


A qualidade e duração do estágio


A preocupação dos estagiários relativamente à qualidade do estágio refere-se, por um lado, à qualidade da formação ministrada e, por outro, ao acompanhamento concedido pelo patrono.

No que respeita à formação inicial (e mesmo a complementar, na segunda fase de estágio) entendemos que a mesma não se destina a colmatar eventuais insuficiências do ensino ministrado nas Faculdades, em determinadas áreas do Direito.

Como já avançamos, consideramos que essa não é tarefa da OA e ao candidato a estágio é exigível um conjunto mínimo de conhecimentos de base que ou adquiriu na Universidade ou terá de adquirir através de outro estudo. Com este pressuposto, a formação deverá incidir essencialmente sobre a aplicação prática e resolução casuística de situações concretas com que o advogado se depara no seu dia-a-dia.

Atrever-nos-íamos a dizer que a formação mais do que transmitir conhecimentos deveria transmitir e providenciar experiências. Pedagogicamente, mais do que o “saber-saber”, a formação inicial do Estagiário, em sala, deveria focar-se mais no “saber-ser” deontológico e no “saber-fazer” do dia a dia do advogado.

O apoio do Patrono é essencial neste processo de aprendizagem e formação. Mas também aqui fazem-se ouvir várias queixas e preocupações dos candidatos à advocacia. Desde os Patronos que exploram o trabalho dos estagiários aos que ignoram a sua existência, de intermeio encontram-se aqueles mais ou menos bem-intencionados e mais ou menos aptos ao acompanhamento do estágio.

Assumir o tirocínio de um jovem é uma enorme responsabilidade e, queremos acreditar, que não serão muitos os que a tomam de ânimo leve. Os tempos são, certamente, diferentes dos que nortearam o nosso tempo de estágio, e os dias no escritório hoje desenvolvem-se a outras velocidades.

O antigamente não é mais comparável às exigências do atual exercício da advocacia. Tal, porém, não deve significar que o Advogado não pode apoiar e acompanhar os mais novos.
Pelo contrário, devemos repensar-se os modos e os meios para o levar a cabo. Entendemos que também aqui a OA deve ter um papel mais ativo.
A OA deve promover a qualidade do acompanhamento que os Patronos cedem aos seus estagiários, colaborando com eles na criação de dinâmicas de formação, na elaboração de instrumentos de acompanhamento e, por vezes, na facilitação de meios.

Por exemplo, a par de formação específica para aqueles que pretendam aceitar o tirocínio (a nível de conceitos pedagógicos e/ou de organização), a OA poderia providenciar modelos de planos de estágio ou mesmo promover a elaboração de manuais de estágio não só para orientar os formandos, mas também os seus orientadores.

Se se pretende aumentar o prestigio da profissão através da promoção da qualidade dos seus membros, tal deverá também passar por promover e motivar os Advogados a aceitar Estagiários, mesmo quando deles nada mais receberão do que a responsabilidade da sua apresentação ao mundo da Advocacia.

Introdução no mundo da Advocacia que… demora. Neste âmbito, é ainda uma forte preocupação dos jovens estagiários a excessiva duração do período de estágio. Note-se que as críticas vão mais no sentido da sua efetiva duração do que aquela que está prevista nos regulamentos.

Na verdade, as experiências dos últimos anos, que se revelam nos atrasos na abertura de novos cursos e na demora na publicação dos resultados das avaliações e revisões dos exames de aferição e de agregação, fazem com que o tempo decorrido entre a inscrição e admissão como Estagiário e a sua inscrição como Advogado decorram longos meses para além dos regulamentarmente previstos.

Esta situação é inaceitável e, em nossa opinião, decorre muitas vezes da falta de planeamento e programação e da falta de comunicação entre todos (tantos) os organismos envolvidos nos procedimentos de estágio. Apesar de já termos aflorado esta questão, entendemos ainda oportuno sugerir o aprofundamento de possíveis soluções.

Achamos que as funções e tarefas da OA neste âmbito devem centrar-se em cada um dos cursos de estágio. Cada curso de estágio deve ser cuidadosamente planeado e só depois disso, anunciado. Não é suficiente tomar a decisão de quando se inicia cada curso e depois ir resolvendo cada problema e cada fase do seu percurso à medida que as questões vão surgindo.

No momento em que se define uma data para abertura de um novo curso de estágio é exigível que já estejam previstos todos os procedimentos concretos e mapeados todos os momentos do estágio até ao seu final, que ocorrerá quando o último candidato for admitido ao exercício pleno da profissão.
Mas concretizemos ainda mais. O organismo responsável deveria ter definido ab initio e para cada curso de estágio:

1. Quem será o responsável nacional e os responsáveis distritais pelo decurso do novo curso, a quem competiria coordenar a sua implementação;
2. A data de início do curso;
3. Quais os formadores disponíveis em cada área de formação;
4. Quais os locais/salas disponíveis;
5. Qual a data limite para o fim do curso inicial de formação;
6. Quem irá realizar o teste de aferição e a respetiva grelha;
7. Qual a data do teste de aferição, local de realização e vigilantes disponíveis;
8. Quais os avaliadores disponíveis para cada área de formação/avaliação;
9. Qual a data para publicação dos resultados provisórios;
10. Quais os avaliadores disponíveis em cada área para apreciar pedidos de revisão;
11. Qual a data limite para publicação dos resultados definitivos;
12. Quais os cursos de formação complementar disponibilizados, respetivas datas e formadores;
13. Quem irá realizar o exame final de avaliação e a respetiva grelha;
14. Qual a data do exame final de avaliação, local de realização e vigilantes disponíveis;
15. Quais os avaliadores disponíveis para cada área de formação/avaliação;
16. Qual a data para publicação dos resultados provisórios;
17. Quais os avaliadores disponíveis em cada área para apreciar pedidos de revisão;
18. Qual a data limite para publicação dos resultados definitivos;
19. Qual o período durante o qual deverão decorrer os exames orais de agregação (e respetivas repetições) e quais os avaliadores disponíveis para o efeito.

Porventura um tal nível de planeamento contraste com a mera marcação de datas para início de curso ou realização de exames. Mas certamente reduziria, com vantagens, as desconformidades que se vão verificando e, consequentemente, as críticas e preocupações dos Estagiários. Sendo certo que simultaneamente seria dado mais um passo para prestigiar toda a organização da AO e dignificar a Advocacia.

A duração efetiva de um curso de estágio até poderia ser a atual (6+18 meses), mas com a certeza de que nesse período a Ordem tudo teria feito para que o candidato tivesse sucesso nesta fase e fosse um digno candidato a Advogado.

Não podemos também olvidar que as mais das vezes a preocupação com a duração do estágio vem aliada ao seu custo e à sua não remuneração. Esta, todavia, será uma outra reflexão.

A inserção no mercado de trabalho


O terceiro grupo de preocupações dos Estagiários é também comum aos jovens advogados e refere-se às dificuldades de inserção no mercado de trabalho e as, atualmente agravadas, dificuldades de iniciar uma carreira na advocacia de modo autónomo e independente. A este facto acresce, as mais das vezes, a preocupação e dificuldade de o trabalho desenvolvido durante o estágio não ser remunerado.
No que respeita a esta preocupação, a OA poderá apoiar os estagiários e os jovens advogados: a jusante, sendo mais eficiente na organização dos cursos de estágio, não permitindo que eles se prolonguem indefinidamente, e a montante, atenuando os custos com o início da atividade.

Pelo menos durante os primeiros anos da sua carreira, os jovens advogados deveriam merecer uma redução significativa do valor das quotizações mensais, facilidades no seu pagamento, diminuição ou dispensa de pagamento de inscrições em eventos formativos organizados pela OA.

Podia ainda a Ordem, à semelhança do que atualmente faz com os seguros, celebrar protocolos com entidades financeiras que apoiassem o investimento inicial no escritório e respetivo equipamento. Neste domínio cremos que muito já se vai fazendo, mas muito haverá ainda por fazer…

Francisco Marques Vieira

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