Entre Avô e Netos - Numa noite, uma conversa informal

O Avô a caminhar para os 79, com saúde Graças a Deus, e com mais de 50 anos de Advocacia, reformado, embora em exercício moderado da profissão.

Cinco dos seus muitos Netos, um já a concluir o Estágio de Advocacia e os outros a acabarem o Curso de Direito.

Encontram-se, numa noite, para uma conversa informal acerca de “Justiça e Advocacia”.

Avô (A) – Regra para a conversa será que todos falem, com a maior liberdade e à vontade, perguntem ou digam o que bem entenderem, as vezes que quiserem, mas cada um fará por saber ouvir, sem interromper.

O diálogo, é, precisamente, cruzar ideias e pontos de vista, aceitar as diferenças quando não houver coincidências, sempre de cabeça fria e de coração aberto.

Netos (N) – Aceitamos a regra, pouco habitual entre nós, costumados a sobrepor palavras e ideias. Vamos, então, ao que nos reúne.

A - Combinámos falar de “Justiça” e de “Advocacia”.

N - Comecemos pela Justiça. Para todos nós, que nos lançamos na aventura do Direito e que aprendemos já algumas coisas, a ideia que temos da nossa Justiça é um tanto confusa, vamos cumulando muitas dúvidas, interrogamo-nos acerca do verdadeiro motivo pelo qual é apontada por tantas pessoas a sua falta de credibilidade.

Do que vimos e ouvimos, parece haver ideias que divergem: por um lado, o Direito, suporte da Justiça, como nos ensinam, é um vasto “mundo” de princípios e normas que se apresentam absolutamente fulcrais para a vida em Sociedade, para a formação do Estado de Direito e existência de outras Instituições, para a defesa dos Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos e para a definição da natureza e dos limites dos correlativos deveres; por outro lado, o Direito só fará sentido, na realidade, quando for capaz de se ajustar aos factos da vida e suscetivel de resolver efetivamente os conflitos de interesses, sejam entre instituições sejam entre pessoas, assim assumido e aceite por todos os que o servem, o aplicam ou a ele recorrem.

A - Também acho que a teoria, apesar de indispensável, é diferente da prática, como nos ensina a experiência. Sem ela, importante como é, a prática não teria qualquer sentido ou aproximar-se-ia do despotismo ou da anarquia.

O encanto do Direito e, consequentemente, a atração pela Justiça, está precisamente em podermos ajustar a teoria á prática.

Quem escolhe e segue uma profissão da área da Justiça deve senti-la com honra e com orgulho, como uma missão e um serviço, que exige total disponibilidade e dedicação, muito sacrifício, estudo e trabalho.

N - Deve ser complicado aplicar o Direito, melhor a Lei, a casos concretos em que se confrontam os interesses e divergem as pessoas, com a particularidade de cada qual querer fazer valer a sua razão e essa razão, por mais absurdo que seja, dever merecer toda a consideração.

Vamo-nos apercebendo que a sensibilidade das pessoas não compreende bem a dificuldade de tal conflitualidade, sendo tentada, por motivos nem sempre sérios, a tomar posições radicais, na maior das ignorâncias, a favor ou contra quem lhe aprouver.

Daí, a facilidade com que perpassa pela sociedade um sentimento de descrença, sobretudo nos casos mais mediáticos, que leva as pessoas a afastarem-se, cada vez mais, do Sistema de Justiça e confiarem pouco no desempenho de muitos dos seus agentes.

A - O Poder Judicial esteve muito tempo votado ao mais profundo esquecimento e submetido a restrições marcadas por critérios meramente economicistas. Só foi despertando quando o Poder Politico, depois de muitos anos, se deu conta que a sua presença na sociedade era um factor de que podia beneficiar ou que podia ser-lhe prejudicial.

Nisso, a Comunicação Social veio permitir, de facto, uma nova oportunidade para quem melhor se aproveitasse dela.

Em boa verdade, é sobre o Poder Politico que vem a incidir, a meu ver, a principal responsabilidade pela desconsideração que tem vindo a atingir o Poder Judicial, motivo pelo qual não se deve atirar para os seus agentes a maior fatia da culpa, sem excluir, naturalmente, que entre estes, também há, e muitos, prevaricadores.

Sou do tempo em que o Poder Judicial era quase indiscutível e geralmente prestigiado, o que conferia aos cidadãos uma razoável certeza quanto à sua idoneidade e à justeza das suas decisões. Eram raríssimos os ataques populares e mesmo públicos ao Poder Judicial e aos seus diversos agentes, sabido que primavam por um excelente relacionamento institucional e pessoal e, não menos relevante, por uma exemplar discrição.

E sempre que se suscitavam críticas, tentava-se que fossem dirimidas dentro das competentes instituições ou mesmo nos próprios processos.

Mas, a vida foi evoluindo e surgiram novas realidades e surpreendentes situações.

O fenómeno da chamada globalização, permitindo partilhar realidades longínquas e desconhecidas; o ensino mais alargado e cada vez mais qualificado; o excesso de oferta no mercado de trabalho, em contra ponto da escassez de procura, face a crescente tecnologia de substituição; verifica-se uma indiscutível melhoria dos cuidados de saúde e o notável prolongamento da vida, sem contrapartida, embora, na natalidade e na consideração que a Família deve merecer, primeiro e acima de outras instituições; desenvolveu-se o gosto pelo cosmopolitismo e o abandono dos campos; as tensões sociais resultantes da emigração e da imigração; as distâncias encurtadas e as comunicações ao minuto; a subida generalizada, mal sustentada, do nível de vida, gerando uma alargada classe média, com fácil acesso a uma multiplicidade de bens inovadores que se sucedem sem limites; uma mais alargada cultura, em conceito amplo, que deixou de ser privilégio de alguns; as várias áreas da ciência, bem mais qualificadas e em constante desenvolvimento, etc, etc, tudo isto, como meros exemplos, e outras tantas situações, coisas boas e coisas más, determinou um tempo e uma sociedade que já pouco tem a ver com a dos últimos trinta ou quarenta anos, dando aso, progressivamente, a perturbantes descompensações sociais e económicas e a um gravíssimo deficit de valores humano/cristãos.
Essa crise atinge, mais grave do que em outros aspetos, a nossa própria identidade nacional, com a soberania mitigada, bem longe de recuperar, tal é, pois, a “marca” da época que, tão preocupadamente, estamos a viver.

Neste quadro, perante a evolução gerada, o Poder Politico deu-se conta da conveniência, quase sempre de forma dissimulada, de que podia aproveitar-se, através alguma pressão ou influência, do Poder Judicial.

Essa situação mais se foi sentindo e manifestando quando o Poder Politico passou a ver na Comunicação Social um novo Poder “de fato”, de fortíssima influência, perante o próprio Estado, a que não foi alheio uma certa “cumplicidade” com os detentores do respectivo capital ou com quem dominava as respectivas redações.

A partir daí, o Poder Judicial foi sendo algo atingido, pelo menos em casos e situações mais mediáticas, senão mesmo tentada alguma “politização”, afetando-o na sua genuinidade, ou seja, na sua isenção e independência.

Poderia chamar à colação alguns exemplos de tentativas daquela natureza, em larga medida assemelhando-se à mesma matriz censória que, no antigo regime, tanto condicionou a liberdade de informação.

N - Esse retrato não deixa nada bem nem o Poder Político, pela sua cobiça, nem o Poder Judicial, por alguma fragilidade!

A - Como é evidente, não se devem, nem podem, generalizar tais suspeições ainda que sejam ouvidas por todo o lado.

Por isso, é justo esclarecer que aquela inversão de princípios a entendo circunscrita a certos casos e situações, largamente publicitadas, que visam atingir alguns políticos, ou certas pessoas mais comprometidas com interesses económicos, ou mais próximas ou envolvidas em processos policiais e judiciais, mesmo quando sujeitos a sigilo, ou já o mesmo afastado, transformando inúmeros casos e processos em devassa pessoal e familiar, em denúncias de pseudo ilegalidades e escândalos ou dando lugar a graves e irrecuperáveis suspeitas.

N - Parece inadmissível! Não estará o Avô a ser demasiado crítico e pessimista? A ser verdade quanto nos diz, então, nós que mantemos tantas ilusões, o que devemos, e podemos, fazer para contrariar esse estado de coisas? Se qualquer um de nós vier a ser Juiz ou Advogado como nos podemos precaver?

A - Sem dúvida que se vos deparam tempos difíceis. O primeiro conselho é nunca desfalecerem e disporem-se, sempre, a lutar e a sustentar os vossos ideais e valores, fazendo-o com consciência esclarecida, com competência e sensatez, sempre de modo ordeiro, desde logo, a partir das próprias instituições profissionais em que cada um venha a integrar-se.

Mais um alerta, qual é o de resistirem, também, ao outro lado do problema, ou seja, o risco de ser o Poder Judicial a tentar imiscuir-se no Poder Politico. O vulgarmente dito “governo de juízes”, procurado em outros países, é, também, uma verdadeira perversão, que desvirtua o princípio da separação de poderes e destrói a isenção e a independência do Poder Judicial, nunca é demais repetir a trave mestra do Estado de Direito Democrático.

Já receoso do que por aí vinha, há cerca de vinte anos, sempre que a oportunidade se me deparava, tentei sugerir, escrevi-o, e chegou a ser votado em conclusões de um Congresso de Advogados, que se deveria caminhar para um “Pacto para a Justiça e Cidadania”, bem como para a criação de um “Conselho Superior (ou Nacional) para a Justiça”.

Esse Conselho tratar-se-ia de um órgão de cúpula, instrumento e garantia de uma coisa que é essencial para o Estado de Direito e para o bom funcionamento do Sistema de Justiça, que considero ser, contra opinião de muitos, a auto regulação do Poder Judicial, quer no seu todo e em cada uma das instituições que o integrem, a criar sob presidência do Presidente da República, cuja possível composição e atribuições seriam objeto de cuidado estudo e de equitativa representatividade, cumprindo-lhe, ainda, a designação de certos agentes judiciais em órgãos ou para funções específicas, bem como a produção de pareceres e a formulação dos mais relevantes projetos legislativos consensualizados.

Nos tempos que estamos a passar, e apesar desse Conselho poder ser tomado como sugestão demasiado ousada, continuo a pensar que poderia ser, de facto, o único Órgão do Estado suscetivel de sentar à mesma mesa quem melhor sabe e quem tenha mais experiência acerca dos complexos problemas que afetam o Poder Judicial e o único instrumento capaz de superar a lamentável crispação, de há muito instalada, entre alguns dos maios representativos agentes judiciais.

N - Segundo o Avô, essas ideias não tiveram qualquer seguimento, e as ténues tentativas que houve logo nasceram inquinadas, não sendo de esperar que passe por elas, a curto ou mesmo a médio prazo, qualquer regeneração do Poder Judicial.

Como garantir, então, a total isenção e independência do Poder Judicial e o princípio da plena Separação de Poderes?
Temos observado que há quem avance com alternativas no sentido de só reconhecer legitimidade ao Poder Judicial quando alguns titulares dos respectivos Órgãos, Juízes e Magistrados, sejam sufragados em eleições populares e venham a ser fiscalizados ou a prestar contas à Assembleia Legislativa.

A - Já disse atrás, que a questão da legitimidade do Poder Judicial é uma das que carece de melhor esclarecimento e, porque não é uma questão líquida, acaba por suscitar nos cidadãos e nos profissionais alguma controvérsia e não menor confusão, que muito tem, também, concorrido para a tal descredibilização do Sistema Judicial.

A eleição popular, direta ou mesmo indireta, eu nunca a aceitaria, precisamente por a entender como a via mais permissiva para influências politico/partidárias ou para se imiscuírem interesses económicos e financeiros dominantes.

Acho que centrarmo-nos demasiado, atualmente, numa controvérsia acerca da legitimidade do Poder Judicial, e como o fiscalizar, será um tempo perdido e, certamente, uma oportunidade sem utilidade, já que não é por ela que, no imediato, se podem resolver os principais problemas que da Justiça.

Aliás, no essencial, a nossa Constituição, salvo, porventura, quanto a criação do tal Conselho Superior ou Nacional, e aspetos com ele conexos, bem como, para mim, uma melhor explicitação a respeito do papel da Advocacia e dos Advogados, no quadro do Poder Judicial, não impede que se enfrentem e se tente resolver outros tipos de questões.

Teremos, por conseguinte, de fazer, para já, um percurso diferente, quer quanto a eficácia do Sistema de Justiça quer a respeito da atuação dos diversos agentes judiciais.

Deste ponto de vista, devia-se evitar ao máximo que os Tribunais se afastem territorialmente dos cidadãos, salvo em casos de justificada evidência e não apenas por uma razão meramente economicista. E que as elevadas custas judiciais e os custos de mobilidade não sejam desmotivadores daquele acesso.

E, sobretudo, que se criem novas e mais transparentes regras que enquadrem, com sentido de maior exigência e responsabilidade, os direitos e deveres de personalidade e de informação; que as normas sobre prescrições sejam revistas com especial equilíbrio; e que o segredo de justiça e outras formas de sigilo sejam rigorosamente respeitados e as respetivas fugas, com a máxima prioridade e brevidade, severamente punidas.

Outro aspeto eventualmente dissuasório poderá ser que os políticos, e quaisquer demais pessoas, condenados com trânsito em julgado por delitos praticados e provados com dolo, em especial os de natureza económica ou equiparados, sejam incapacitados de exercer qualquer cargo político ou público, por um tempo muito alargado, ou mesmo interditos sine die.

Outra questão a resolver será como, com justiça e sem desfigurar a liberdade, poderá ser preservada a impunidade da Comunicação Social, quando os factos noticiados, sem contraditório ou não refletindo informação que emane de entidades autorizadas ou agentes judiciais credenciados ou de advogados, segundo as normas do seu Estatuto, e esses factos se mostrem mal difundidos ou publicitados de modo ambíguo, sobretudo quando assentem, sem mais, numa informação que consta ou se diz de fonte credível.

 N – Ao Avô não lhe parece que os políticos, e até certos agentes judiciais, governo após governo, tentam lançar-se, com todas as limitações económicas que existem, em projetos demasiado irrealistas e impreparados, muito discutíveis, prometendo certas soluções estruturais, sempre difíceis e onerosas, que vão ficando em “banho de maria” em vez de privilegiarem alternativas mais realistas e práticas?

Deviam preocupar-se mais com a gestão e o funcionamento, em geral, dos Tribunais e aligeirar os trâmites processuais, como lemos e ouvimos a cada passo, em especial através uma melhor contingentação de processos, não só em número mas, também, atenta a sua natureza, a repercussão social e o seu maior valor.

E esse objetivo não deveria assentar, também, no reforço da formação, no eventual regresso a um tempo comum de início de carreira e, sem complexos, a dotação de melhores condições materiais, que visem assegurar a dignidade e o prestígio dos vários agentes judiciais?

A - Estou de acordo com Vocês, e melhor prova do que dizem, a meu ver, está no facto de não haver coragem em assumir e em promover o absoluto imperativo do Poder Judicial se desprender, o máximo possível, do Poder Politico, tais são os maus exemplos passados sobre a designação do Provedor de Justiça e de Membros do Tribunal Constitucional.

Também, desde sempre, venho denunciando e apoiando a crítica quanto à profusão de leis, muitas vezes desnecessárias, mal redigidas, confusas, até contraditórias, dando a ver que os objetivos essenciais da Justiça não merecem muito mais estudo, participação mais ativa dos agentes que vivem dia a dia os casos e os problemas, o diálogo entre todos.

Tudo isso permite que se vá ampliando o coro dos que pouco ou nada sabem do Sistema Judicial, e se limitam a apregoar a “morosidade” da Justiça e a estigmatizar, exagerada e generalizadamente, os agentes judiciais, acusando-os de só olharem aos seus interesses de classe ou pessoais, ditos “corporativos”.

Mas vamos por partes.

Desde sempre venho apoiando a justa crítica acerca da profusão de leis, muitas vezes mal redigidas, confusas, contraditórias, parecendo que os objetivos visados desmerecem estudo, participação mais ativa dos agentes, que dia a dia sentem e vivem os problemas.

Quantas vezes legisla-se sobre matéria já tem o seu regime jurídico bem definido e experimentado e, quanto muito, mereceria alguma adaptação ou ajustamento.

A substituição de um qualquer dos chamados grandes Códigos é uma tarefa, como foi no passado, de muitos anos, naturalmente não dependente das oscilações por que passe o Poder Politico.

Por outro lado, vai-se permitindo, que se generalize e se agrave o coro dos que só sabem criticar, apregoando a morosidade da Justiça e estigmatizando, generalizadamente, os agentes judiciais, acusando-os de só olharem a interesses pessoais ou de classe, logo qualificados pejorativamente de corporativos.

Já lá irei adiante.

Acresce que entre tantas outras ideias que se poderiam elencar, há que tornar fácil e responsável o acesso à Justiça e ao patrocínio, basicamente em relação a propiciar e facilitar mais igualdade de oportunidades e maior acerto e rigor sobre os critérios adotados.

De uma perspetiva diferente, há que desvalorizar, por algo demagógico, a diferenciação entre juízes mais e os menos competentes ou diligentes e entre os advogados rotulados de os melhores e os piores, o que é, em relação a uns e outros, uma descriminação redutora e, se alguns daqueles assim podem ser, estamos perante uma inevitalidade, tal sucede em qualquer profissão.

Daí, a meu ver, não se deve perder qualquer oportunidade para uma ação pedagógica visando melhor clarificar e reafirmar, sem tibieza nem ambiguidade, os princípios deontológicos de cada grupo ou classe.

Donde resulta que se deva ser muito mais implacável quanto ao rigor e ao momento para o exercício efetivo do respetivo poder disciplinar.

N - E não é assim?

A - A morosidade é uma realidade, que merece muita atenção, mas, a meu ver, há que a relativizar. A Justiça nunca poderá deixar de ter o seu tempo e este não é, nem deve ser, precipitado ou demasiado célere, porque obriga a estudo e a ponderada decisão, respeitando os direitos, os deveres e as garantias dos cidadãos. Cada qual com o seu problema, a maioria das vezes, o próprio é o que mais releva, independentemente da sua importância ou valor objetivos.

A meu ver, a excessiva morosidade, já inúmeras vezes condenada internacionalmente, é, tão só, uma das várias questões que afetam a credibilidade do Sistema de Justiça, e só resolúvel ou mitigável através da simplificação de regras de processo, orientando-as mais para a verdade material do que para a sucessão e proliferação de atos formais, não me repugnando, por isso, que para todos os casos e em todas as áreas, pudesse ser adotada, como princípio, uma só e mesma forma ou espécie processual.

Talvez essa via evitasse a tentação actual de subtrair aos tribunais situações que sempre estiveram na sua alçada, convertendo-os em procedimentos meramente administrativos, reduzidos a formulários e a diligências de balcão, verdade seja dita, também com custos para o Estado e, sobretudo, sem o respeito e o apreço que os cidadãos reconhecem e admiram no Poder Judicial.

Quanto ao corporativismo, expressão usada pejorativamente, identificando-o com instituições do anterior regime, ele é, na minha perspetiva, inultrapassável, até, saudável, uma vez ser evidente que existem interesses próprios e diferenciados dos vários agentes judiciais, legitimamente congregados em associações distintas de classe.

O Poder Judicial, com a sua autonomia, justifica plenamente que os diversos agentes, que nele se inserem e que o servem, sendo, até, todos eles titulares ou participantes activos de interesse público, se preocupem com a sua actividade e a queiram defendida e protegida nos seus valores e princípios próprios.

Basta que se atente no facto de cada classe desses agentes, desde sempre, ter regras específicas de organização, de comportamento, de deontologia e de disciplina.

Esse espírito de corpo torna-se fundamental, aliás, para a boa Administração da Justiça, assegurando exigência de melhor formação, controle de seriedade e de competência, e propiciando uma desejável melhor relação e harmonia entre os vários grupos e agentes.

N - As críticas que o Avô deixou, claras ou subentendidas, esbarram numa coisa que é patente, ou seja, o tempo do Avô foi outro e a realidade agora é que vivemos num mundo em que a vida, pessoal, familiar, profissional e social não se compadece com demoras. Em tudo se procura resultados mais imediatos.

 Por outro lado, toda a gente, a final, segundo a sua perspectiva ou atividade, está possuída de interesses corporativos, que se não contestam nem são, de modo algum, desprezíveis. De certo modo, o associativismo e o próprio sindicalismo expressam a necessidade de observar princípios e regras que respeitam a cada atividade ou profissão regulamentada, seja de natureza pública ou privada.

Ora, o que se pretende é, precisamente, superar o efeito eventualmente nefasto dessa concentração de interesses, desfavorável ao bom desempenho do Estado e de tantas outras instituições, olhando mais para os princípios gerais, para as afirmações da cidadania, para a solidariedade social, ao fim e ao cabo, mais diretamente para as pessoas e para o bem comum.

Não haverá modo de conciliar tudo isso?

A - Vamos a ver. Compreendo a preocupação, da qual partilho.

Seria fácil responder que um Poder Politico autoritário ou ditatorial poderia, eventualmente, impor regras, obviamente arbitrárias, que dissipassem alguns dos problemas que temos vindo a falar.

Vivi uma época muito especial em que esse tipo de Poder Politico existiu, de facto, e restringiu ou condicionou, em múltiplas áreas e aspectos, a vida dos cidadãos e das instituições.
Mas, já adulto e formado, e a praticar a Advocacia, não receio dizer que o Poder Judicial, de um modo geral, não era, ou foi muito pouco, influenciado pelo Poder Politico e, tanto assim, que os cidadãos acolhiam bem as decisões dos tribunais e respeitavam a intervenção dos diversos agentes judiciais.

Estou a afirmá-lo do mesmo passo que me cumpre salientar alguns aspetos altamente reprováveis que marcaram a época anterior ao 25 de Abril, tais como: a existência de tribunais especiais, ditos Plenários, para os políticos e demais cidadãos que o Estado entendia perseguir ou desejar calar, fundamentalmente, por fazerem parte de organizações ou movimentos que haviam sido proibidos; para o regime prisional bem mais severo que então era aplicável; para as chamadas medidas de segurança, que se reconduziam a autêntica prisão continuada; bem como para a investigação e instrução de certos processos cometidos à polícia politica.

Ora, o problema está, precisamente, em não ser minimamente desejável um regime em que tais situações ofendam a liberdade e os demais direitos dos cidadãos.

O risco que se corre com as críticas e demais indefinições, antes referidas, acerca da normal morosidade da Justiça ou a respeito do tal pseudo poder das corporações, mesmo quando possam resvalar para alguns excessos, ainda vale bem a pena se confrontado com a dualidade que existe em regimes não democráticos.

É certo que em Democracia também há situações que se pagam bem caras; todavia, há maneira de as denunciar, de as combater e de as superar.

No momento que estamos a viver, mais preocupado com a nova geração, que é a vossa, e a que se seguir, estou seriamente receoso com as consequências do desnorte com que fomos e estamos a ser administrados e tão fortemente constrangidos do exterior, a ponto de  termos cedido soberania e identidade a troco de dinheiro, e de dinheiro que derretemos, e que temos de pagar, conduzindo o Pais a um situação em que a austeridade, tal como imposta, se aproxima do confisco e acabe por aproximar o Estado a um regime desmesuradamente autoritário.

E o mais grave é que já houve na História situações muito semelhantes que conduziram a resultados não desejáveis, que parece estarem esquecidas.

Por tudo isto, continuo a desejar, cada vez mais, que a legitimidade do Poder Judicial, expressa na sua isenção e independência, se mantenha como uma questão nacional pacífica e, em caso algum, nunca controlada pelo Poder Politico, qualquer que seja o modo, mantendo-se, antes, como um imperativo popular, traduzido no juízo e no sentimento que for emanando da consciência dos próprios cidadãos, designadamente, acerca da justeza com que for aplicado o Direito aos casos concretos e à exigência das correções que se forem mostrando adequadas.

Em grande parte, os recursos, e não só eles, servem, precisamente, para sindicar o julgamento do caso e sentir o acerto ou o erro face à lei aplicável, e a confirmar ou reparar, em instâncias superiores ou mesmo em sede legislativa, a justiça feita ou a injustiça praticada.

Fundamentalmente, assim, a resposta que lhes posso dar vai no sentido das vossas interrogações deverem, sempre, ser resolvidas no âmbito de um Estado de Direito Democrático, que assegure sem ambiguidade a Separação de Poderes, que respeite os Direitos, as Liberdades e as Garantias dos cidadãos e se pratiquem os valores de uma Cidadania livre e bem informada, que não negue a Igualdade dos Cidadãos perante a Lei e em que o Poder Judicial e seus agentes se afirmem, sempre e a qualquer nível, com total isenção e independência.

N - Veremos, pela vida fora, nas profissões forenses a que acedermos, se esse seu idealismo, que naturalmente admiramos, é apenas teórico, para não dizer utópico, ou se é realista.

Agora percebemos melhor, como tantas vezes tentou dizer-nos, que o Avô não é um pessimista e que, a final, vem suscitando e alertando, sim, para motivos de reflexão e de observação, acompanhados por uma forte mensagem de Esperança.

Já agora, a nossa conversa, embora longa, não pode acabar sem o Avô nos dar conta da sua experiência de vida como Advogado.

A - Vamos a isso. Tentarei ser breve, porque mais de 50 anos de profissão, que nasceu por uma opção pelo Direito, aliás não premeditada, sem tradição próxima familiar e apenas portador do livro corrente do 7º ano, Organização Politica e Administrativa da Nação, tantos anos volvidos, não se pode descrever apenas numa conversa.

Correndo o risco, até, de, por força da idade, ser tentado a falar-vos mais dos tempos antigos, que pouco vos podem dizer, do que dos mais recentes, que a memória paradoxalmente vai deixando para trás.

Desde já, uma coisa tem sido constante para mim, qual é a de nunca ter desconsiderado os mesmíssimos valores essenciais e insubstituíveis bem como a elevadíssima responsabilidade social que torna a Justiça e quem a serve o mais forte pilar e a última reserva de um verdadeiro Estado de Direito.

Como Advogado fiz de tudo um pouco, procurando discrição, a custa de trabalho e persistência. Fui advogado tanto de ricos como de pobres e, muitas vezes, sem qualquer remuneração.

Muitas horas de sono foi perdido e o coração assustado.

Uma coisa era muito diferente do que, lamentavelmente, se verifica hoje: tínhamos fácil acesso aos próprios Juízes sempre que precisávamos de algum esclarecimento ou de ajustar o dia ou a hora de uma diligência; e era frequente, também, batermos à porta do chamado Escrivão de Direito, talvez a pessoa que mais prática tinha de certas regras de processo e que nos ajudava com o maior paciência e utilidade.

Como, também, bem diferente do que é hoje, entre todos os agentes judiciais, as regras de cortesia e a boa educação.

Trabalhar sob a pressão de prazos é terrível mas conseguia defender-me, quase nunca deixando um trabalho para o último dia.

Tinha realmente uma qualidade, sem modéstia, que nasce por sorte e não se aprende, que era conseguir concentrar-me no que estava a fazer, mesmo quando a mulher, os filhos, os amigos e, até, a telefonia e a televisão, cruzavam ruído ou conversa na mesma sala.

Além disso, tive a sorte de conhecer e trabalhar com velhos Advogados, um como Patrono e outro que muito me ajudou nos primeiros tempos, ambos muito exigentes, grandes barristas, cem por cento advogados. A ambos, o patrono Dr. Mário de Castro e o que me iniciou e me não deixou sair da advocacia, Dr Bustorff Silva, Advogados Honorários, a ambos, em especial, devo o muito que me ensinaram, o exemplo, a amizade e a paixão que dedicaram à profissão.

Vezes houve em que me esmerei num trabalho que me pediam, e, quando apresentado e lido, vinha de volta, um tanto sucumbido, com a exigência de fazer outro, como me diziam “és capaz de fazer bem melhor”.

Mais um safanão no orgulho!

Muito cedo aproximei-me da Ordem dos Advogados e nela trabalhei mais de 25 anos no desempenho de cargos e de missões que muito me honraram.

Fui sempre um Advogado que tentei pautar a vida e a profissão segundo critérios de trabalho, de bom senso, de dedicação e de lealdade.

Orgulho-me de ter conseguido um excelente relacionamento com Juízes, Magistrados, Colegas, Funcionários e, sobretudo, com Clientes.

Considero-me, por tudo, realizado, se bem que pudesse ter feito mais e melhor.

O que recebi mais gratificante da profissão foi conseguir manter a dignidade e a independência.

Fiquei feliz quando o Tio Luis quis escolher a Advocacia e a tem exercido com autonomia e mérito próprio.

Deu-me o exemplo de que a Advocacia de hoje é bem diferente da de ontem.

No meu início éramos generalistas e hoje é indispensável que haja especializações e parcerias.

Eu, já com 60 anos, rendi-me ao computador, com enorme dificuldade e alguma perplexidade, sobretudo de minha Mulher, continuando a praticar ainda erros primários, que muito frustram e aborrecem mas que não fazem desistir.

Tenho a Cédula Profissional 2002, de Lisboa, no tempo em que éramos muito poucos em exercício efetivo.

Agora são aos milhares os advogados que por aí andam, enfrentando um tempo das maiores dificuldades, como eu nunca tive.
Será um tempo de perigosa concorrência que vos espera, convicto de que o saberão superar, desde que com criatividade e muita paciência.

Na Advocacia um Advogado nunca desiste!

A “luta” está no inconformismo e na persistência. E na exigência.

A Advocacia é uma profissão que não se esgota, nem nunca cansa.

Consiste, incontornavelmente, num serviço de elevado interesse publico, muito digno e sempre considerado de grande prestígio, pese embora inúmeros atentados que enfrentou e os muitos que ainda hoje se lhe deparam.

Só há que não esmorecer.

N - Avô, para terminar, só um esclarecimento. “O Estatuto da Ordem dos Advogados” não carece ser modificado?

A – Os Advogados sempre tiverem estatuto profissional próprio, sendo aperfeiçoado ao longo de anos conforme as exigências da profissão e o actual, que é de 2005, suponho estar em vias de ser revisto.

Também acho que é preciso, para melhor o adaptar a novas situações e modos distintos de exercício da profissão e, porventura, para responder a exigências estruturais, naturalmente decorrentes de um universo de advogados cada ano em desmesurado crescendo, enfrentando já gravíssimas condições, até de sobrevivência.

A esse propósito, fixem Vocês uma crítica pessoal, que há muito suscito e tenho vindo a alertar, sobretudo aquando do Estatuto de 2005, mas nunca consegui que fosse acolhida.

Há uma lei que define o que são os chamados “Atos próprios dos Advogados e Solicitadores”; é uma lei avulsa; nem sequer coincidente com o Estatuto – a atual é de 2004 – , que apenas se limite a citá-la.

Não aceito, nem compreendo, como é que um Estatuto, que em tudo rege a profissão, não inclui, precisamente, como seu elemento básico e estrutural, as normas em que se define, no que lhe diz respeito, o que é um Advogado e o que pode fazer.

Mesmo a chamada “Procuradoria Ilícita”, que tanto por aí prolifera, e que a dita lei também visou proibir, deveria ter assento, como violação que é, bem como o respetivo sancionamento, no Estatuto da Ordem dos Advogados, que mais não é do que o Estatuto Profissional dos Advogados.

Espero que essa falha seja reparada, com a vantagem, ainda, de evitar que uma nova lei, cuja sombra por aí já paira, venha a “intrometer-se” na Advocacia e na Ordem, proximamente ou um qualquer dia, pretendendo, no mínimo, tutelar as profissões liberais, as tais “regulamentadas”.

Sempre que quiserem podemos voltar a estes ou a outros temas.

N - Deixou-nos muito para pensar! Obrigado Avô.

Está cansado?

A – Um Advogado nunca se cansa!

Conversa entre:
Avô - José de Sousa de Macedo.
Netos - Pedro Maria da Costa de Sousa de Macedo Simão (Advogado Estagiário), Luis Maria de Sousa de Macedo Rodrigues de Sousa, José Maria da Costa de Sousa de Macedo Simão, José Frederico Salgado da Costa de Sousa de Macedo e Maria Madalena Sousa de Macedo Rocha e Melo.

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