Formação Inicial na Ordem dos Advogados: o trabalho de Sísifo?

Com as presentes páginas visa-se promover uma reflexão sobre as designadas Formação Inicial e Formação Complementar, considerando-se o seu escopo como diverso do que preside à Formação Contínua.

Enquanto nas primeiras se trata de habilitar licenciados em Direito ao exercício de uma profissão, na segunda visa-se uma cada vez mais necessária, até por força da voragem legislativa, actualização e consolidação dos conhecimentos adquiridos.

A este propósito relembre-se, por nunca ser demais salientar, que a Ordem dos Advogados é uma Associação de Utilidade Pública, sendo que uma das suas principais incumbências é certificar as competências de um licenciado em Direito para o exercício da profissão. Tal certificação só pode ocorrer depois do candidato estar familiarizado com a inegável responsabilidade que passará a transportar consigo e, no nosso modesto entendimento, só pode ser processada após correcta e leal mas também rigorosa avaliação.

O período de estágio1 , e dentro deste o da Formação Inicial em especial, tem sido um dos temas mais debatidos junto da nossa classe, defendendo até algumas correntes de opinião que a mesma deveria transitar para as Universidades. Avança-se desde já que esta não é, de todo em todo, a nossa opinião. Transpor a Formação dos candidatos a Advogados para o seio do mundo académico significaria perder a possibilidade de transmissão da essência da profissão e um divórcio eminente das suas especificidades.

No mesmo transe, também não se concede quanto à ideia de fundar uma Escola da Advocacia2 e canalizar todos os formandos para a mesma, já que tal teria como consequência necessária a obstacularização do estágio a formandos de outras zonas geográficas e, de igual modo, vedaria a prestação de alguns excelentes formadores3.

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1. Como se sabe, o estágio divide-se em duas fases fundamentais: a Formação inicial, cuja duração não deve ser superior a seis meses, e a Formação Complementar, à qual se acede após aprovação nos exames referentes à primeira fase e que não deve exceder os dezoito meses. 
2. Uma outra dificuldade se levanta desde já: tal Escola teria que natureza jurídica? E conferiria algum grau? Qual? É que a conferir, por exemplo, o grau de mestrado, a duração das aulas teria de ser superior e importaria a realização de uma dissertação, o que não parece, de todo, compaginável com o escopo desta formação.  
3. E isto, obviamente, sem prejuízo do recurso aos meios informáticos, cuja importância e mais valia não se negam. Sucede que não se defende a fase de Formação Inicial como algo que possa ser apreensível em meras aulas de e-learning, antes se entendendo o contacto pessoal como a melhor forma de transmissão de conhecimentos e experiências. 

Acresce ainda que se entende que se perderiam algumas das especificidades de cada Conselho Distrital em concreto, uma vez que a advocacia dos grandes centros urbanos não tem as mesmas exactas características da advocacia praticada em comarcas mais pequenas.

O exercício da profissão de Advogado pressupõe, como se afigura evidente, o conhecimento teórico assumidamente leccionado pelas Universidades, sem qual se revela insustentável a prática de actos por qualquer profissional forense.

Contudo, ser-se Advogado implica muito mais do que sólidos conhecimentos de direito substantivo. Pressupõe, ao invés, competências específicas no direito adjectivo e, sobretudo, o domínio absoluto do Código Deontológico que a todos obriga. É o Estatuto da Ordem dos Advogados que nos distingue das outras profissões e, simultaneamente, este é o diploma legal que nos une e torna todos os advogados iguais.
Deste modo, não se acompanha quem defende que compete à Ordem dos Advogados avaliar conhecimentos adquiridos em instituições do Ensino Superior, o que até se nos afigura claramente inconstitucional4.

Ao invés, o que competirá à Ordem dos Advogados avaliar e certificar é que o candidato em causa está apto, do ponto de vista processual e de aquisição de uma certa forma de estar e de trabalhar, a exercer uma profissão que, como todos sabemos, merece consagração constitucional.

Na nossa opinião, esta é a pedra de toque das designadas Formação Inicial e Formação Complementar e, no limite, a sua maior mais-valia.

Encarada desta forma, a Formação Inicial só cumpre o seu desiderato se incidir sobre a componente adjectiva (e esta na perspectiva do exercício do mandato forense5) e, ainda com maior relevo, sobre a Deontologia Profissional.

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  4. Também se discorda de uma forma veemente da perspectiva da Formação Inicial poder significar, ainda que mediatamente, uma espécie de "tampão" ao acesso à profissão. O único critério de acesso deve ser a demonstração de aquisição dos conhecimentos necessários para o exercício da profissão, tendo presente o vincado interesse público da mesma. A protecção da profissão deve fazer-se noutros campos, como a defesa da Lei dos Actos Próprios e a Advocacia Preventiva e não à custa de um não assumido numerus clausus que impeça reais interessados de acederem à profissão.   
  5. Não se desconhece, como se afigura óbvio, que a licenciatura contém cadeiras de direito adjectivo, pese embora leccionadas sob uma perspectiva diversa da que se preconiza nesta sede. 

Trata-se, pois, de, num primeiro momento, prover ao candidato todos os meios necessários para que seja perceptível o que distingue a Advocacia de outras profissões e em que medida lhe é exigido, processual ou extra-processualmente, um comportamento condigno.

Tais meios, reitera-se, não se confundem com a aquisição de conhecimentos do ponto de vista substantivo, cuja existência se deve presumir atento o facto de serem ministrados aquando da licenciatura.
A Formação Inicial, tal como a entendemos, deve consubstanciar uma verdadeira ferramenta para a fase seguinte, ou seja, para a Formação Complementar.

Nesta medida, parece-nos que serão de manter os módulos adjectivos, embora se acrescente que se deva reflectir quanto à possibilidade de se incluírem outros ramos, conferindo-se aos formandos a opção de frequentarem mais um, de acordo com as expectativas de exercício que tenham6.

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 6. Com a presente proposta, procura-se fazer face a uma crescente especificidade dos diversos ramos de direito adjectivo. Visa-se, desta forma, permitir aos candidatos, perante o que perspectivam vir a ser a sua área de actuação, escolherem um outro módulo, desde já se apresentando como sugestões o Direito Processual Laboral, o Direito Processual Administrativo e Fiscal e o Contencioso Comunitário. Não se desconhecendo as dificuldades organizativas que a mesma encerra, ainda assim parece-nos que o seu benefício, principalmente tendo presente as modificações impostas por Bolonha, é muitíssimo superior, podendo inclusivamente tais sessões serem partilhadas com Advogados, com inscrição definitiva, em sede de Formação Contínua. 

Aplaude-se ainda a inserção da formação atinente ao Citius, em especial, sendo certo que a mesma deveria ser complementada com sessões on-job, com vista a permitir aos formandos o treino em sessão.
Conjuntamente com tais módulos, considera-se que é de manter, atenta a sua essencialidade, a Deontologia Profissional, embora se defenda que deverá ser alvo de um aumento da carga horária, por forma a permitir eventuais visitas aos Tribunais, rollplay's e maior incidência na organização judiciária.

Não se desconhece que, fruto do número de horas atribuídas, esta última matéria é, muitas vezes, objecto de menor reflexão, não obstante a sua relevância prática e a ausência na maior dos programas académicos de Processo Civil.

Adicionalmente, dever-se-ia considerar a existência de sessões avulsas e sobre temas da ordem do dia ministradas por outros profissionais do foro, entre os quais juízes e procuradores.
Acrescente-se, por último, que não nos revemos numa formação ministrada única e exclusivamente através do método dos casos. Aceitando-se como princípio que a Formação Inicial não deve servir como reprodução dos dogmas teóricos, não se resiste a deixar expresso que não há prática sem consolidação de princípios.

Consequentemente, as sessões, independentemente da área, deverão ter uma vertente eminentemente prática mas com constante apelo aos conhecimentos teóricos que estão pressupostos.

Por outro lado, e quanto aos formadores, não se obstando por princípio à selecção por concurso, não pode deixar de se referir que, nos moldes em que o mesmo foi operado, por um lado afastou Colegas que vinham, com grande êxito, desempenhando tal papel, da mesma forma que importou a contratação de outros que, por ventura fruto da inexperiência, deram origem a fundadas reclamações pelos formandos7.

Relembre-se, pois, que o aumento dos emolumentos foi justificado com a necessidade de custear uma formação de qualidade, formação essa que, por força da relevância do papel do Advogado, não se compadece com amadorismos ou experiências frustradas, sob pena de se comprometer a fé pública que a Ordem tem merecido na atribuição do título profissional.

Por último, não obstante a Formação Inicial estar distribuída pelos diversos Conselhos Distritais, os programas deverão estar absolutamente uniformizados e testados antes do início de cada curso, designadamente quanto à duração de cada tema, sob pena de se criarem assimetrias na importância dada a cada um.

Após a aprovação nos exames, os quais devem contemplar a matéria constante dos respectivos programas de cada módulo8, inicia-se a Fase de Formação Complementar, durante a qual é expectável que o advogado estagiário tenha um contacto mais estreito com a realidade forense, devendo fazer uso dos ensinamentos colhidos na primeira fase e praticá-los.

Nesta fase é consensual que o principal papel formativo compete ao Patrono, não se podendo deixar de assinalar que inexiste um qualquer grau de controlo quanto às qualidades e até disponibilidades dos Advogados que aceitem tal missão9.

Paralelamente, a Ordem dos Advogados tem um papel relevante, no sentido de propor formação de relevo e que possa ser de utilidade comprovada para os Advogados Estagiários. Tal formação deve abranger, entre outras, novidades legislativas, sugerindo-se ainda que possa abarcar também a mais recente jurisprudência dos órgãos da Ordem e aspectos de Direito Comunitário, com especial incidência sobre a questão do reenvio prejudicial. Coloca-se ainda à reflexão a possibilidade de se ministrarem cursos de línguas na vertente jurídica e, bem assim, de outras áreas relacionadas, como seja gestão, obviamente que com carácter facultativo.

Estas são as minhas reflexões, desde já pedindo a indulgência dos leitores.

Rita Garcia Pereira
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  7. Tem-se igualmente alguma dificuldade em se aceitar os dois critérios eliminatórios, ou seja, a imposição dos dez anos de exercício e a impossibilidade de cumulação com o exercício de cargos electivos no seio da Ordem dos Advogados. Quanto a esta última, julga-se que seria até útil que parte dos membros do Conselho de Deontologia e/ou do Conselho Superior da Ordem dos Advogados pudessem ministrar sessões de Deontologia Profissional, maxime pelo inegável acréscimo que podem importar quanto à jurisprudência de qualquer um dos dois órgãos. 
  8. Não se aplaude que os exames possam conter matérias objectivamente não constantes dos programas, em primeiro lugar por uma questão de lealdade mas, acima de tudo, porque tal significaria a avaliação de áreas fora da Formação, o que nos parece inconstitucional. 
  9. Esta observação tem de ser conjugada com o facto de inexistir qualquer obrigatoriedade de Formação Contínua ou mecanismo que ateste a actualização de conhecimentos durante toda a vida profissional de um Advogado. Adite-se ainda que não se desconhece que o período de estágio é por vezes usado, indistintamente por sociedades de advogados ou por advogados na dita prática individual, como mão-de-obra mais barata, sem se atender às necessidades do mesmo. 

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