Formação Inicial e Complementar de Advogados

Os nºs 5 e 6 do artigo 1º da Lei dos Atos Próprios dos Advogados1  e o nº 1 do artigo 61º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA)2  consagram um princípio de exclusividade para a prática, a título profissional e no interesse de terceiros, do seguinte conjunto de atos, qualificados como “atos próprios de advogados”:

(a) O exercício do mandato forense;
(b) A consulta jurídica;
(c) A elaboração de contratos e a prática dos atos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;
(d) A negociação tendente à cobrança de créditos;
(e) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de atos administrativos ou tributários.

Este princípio de exclusividade, que dispõe que unicamente os licenciados em direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem praticar, a título profissional e no interesse de terceiros, algum dos atos próprios dos advogados, é uma decorrência da importância que uma prática adequada de tais atos se reveste para a comunidade e que conduz a que fazer de tal prática profissão fique restrita aos indivíduos que receberam uma preparação específica para o efeito. Repare-se que existem mesmo alguns destes atos, como é o caso de atos a praticar junto de certos tribunais em que se suscitem questões de direito, cuja prática está vedada, mesmo a título não profissional, a quem não tenha a qualidade de advogado, como decorre do disposto no artigo 32º do Código de Processo Civil.

Ora, aquilo que diferencia o indivíduo que acabou a sua licenciatura em direito – e que só com ela não está habilitado a praticar atos próprios de advogado - daquele que tem idêntica licenciatura mas que já se encontra inscrito na Ordem dos Advogados é, tão-somente, a formação inicial e complementar a que este último foi sujeito, durante o seu período de estágio de advocacia.

Cremos não ser preciso ir mais longe para demonstrar a importância que uma adequada formação inicial e complementar dos candidatos a advogados tem para a sociedade e a responsabilidade que daqui decorre para as entidades a quem compete essa formação. Tal formação terá de funcionar, na verdade, como garantia de que atos com a relevância social dos atos próprios de advogado são praticados por pessoas adequadamente qualificadas para o efeito.

O passo seguinte será então ver que tipo de formação se revela como a mais adequada a uma tão exigente finalidade. O que a seguir se dirá mais não é, porém, do que um alinhavar de um conjunto de ideias como forma de contributo para a discussão sobre o modelo de formação dos advogados.

A formação, inicial e complementar, de advogados deverá, nesta nossa perspetiva, consistir num conjunto de processos planificados com vista à transmissão de conhecimentos, ou ao treino das competências necessárias ao exercício da advocacia, e que estão para além dos conhecimentos ministrados pelas faculdades de direito, seja em sede de licenciatura, de pós graduações ou mestrados ou, até mesmo, de programas de doutoramento.

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Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto 
Aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro de 2005

O atual sistema de formação de advogados, de todos conhecido, assenta em três pilares:
1 - Frequência de ações de formação promovidas pelos centros de estágio da Ordem dos Advogados;
2- Prática profissional tutelada, aquilo que poderíamos designar por “Learning on the job” ou seja, a prática de atos próprios da profissão sob a supervisão de um advogado com um mínimo de experiência na matéria;
3 - Assistência e intervenção em diligências processuais, incluindo no âmbito do regime vigente de Acesso ao Direito e aos Tribunais.

Apesar da existência desta trilogia, a regulamentação vigente - e a realidade prática – é a de que continua a impender sobre os patronos a fatia de leão do processo de formação dos candidatos a advogados.

Neste sentido veja-se, por exemplo, o que se diz sobre o papel do patrono no preâmbulo do novo Regulamento Nacional de Estágio, aprovado pela Deliberação n.º 3333-A/2009. De acordo com ele “ ...o eixo da formação deslocar-se-á dos centros de estágio (sendo certo de que não há memória de que alguma vez tal eixo aí tenha estado...) para os patronos, pois é na observação da concreta atividade profissional que os candidatos à Advocacia deverão recolher os ensinamentos necessários à futura prática profissional.

Sem se pretender negar a importância que tem num estágio de advocacia a figura tutelar do patrono - e sem pretender acabar com o dever constante da alínea f) do artigo 86º do EOA que diz ser dever do advogado que assume a função de patrono “dirigir com empenhamento o estágio dos advogados estagiários” - cumpre, no entanto, questionar, se será adequado, para já não dizer, justo, manter o sistema de formação dos candidatos a advogados tão dependente da figura do patrono.

Cumpre ter presente que a sociedade portuguesa sofreu profundas modificações no último quarto de século. A integração na União Europeia trouxe novos desafios também para a área da advocacia. A este propósito bastará pensar na liberdade de prestação de serviços de advocacia que vigora nos vários países que integram a União Europeia, e que introduziu a possibilidade de advogados habilitados num Estado Membro virem a exercer advocacia noutro Estado Membro.

Também a globalização trouxe desafios acrescidos para a advocacia. É cada vez mais frequente que os assuntos com que os advogados nacionais lidam tenham conexões com outras jurisdições para além da jurisdição portuguesa. Se é certo que o direito - sobretudo um direito pertencente à família românico-germânica, como é o caso do nosso - e a prestação de serviços a ele associada é um bem mais dificilmente exportável do que a prestação de serviços de saúde ou de engenharia, dada a diversidade de sistemas jurídicos e as diferenças existentes entre estes, a verdade é que os advogados precisam cada vez mais de ser preparados para trabalharem em conexão com sistemas de direito distintos daquele que estudou na faculdade.

Por outro lado, a profissão de advogado passou a ser cada vez mais frequentemente exercida no âmbito de organizações profissionais, sejam elas sociedades de advogados ou entidades completamente distintas destas, como é o caso das empresas. Pense-se, a este propósito, no crescimento verificado entre nós não apenas no número de sociedades de advogados existentes como, igualmente, no número de advogados de empresa.

Iniciou-se igualmente uma era de especialização, o que conduziu a que a par de advogados generalistas, que continuam a fazer consulta jurídica num conjunto diversificado de matérias de direito e a manter uma atividade de barra intensa, coexistam também advogados que limitaram a sua atividade profissional a determinadas áreas do direito podendo nem sequer exercer, no seu dia-a-dia, mandatos forenses.

Mas também as organizações se tornaram mais complexas e mais exigentes quanto aos níveis de qualificação e competências que requerem aos seus profissionais. Hoje o exercício de uma atividade profissional dentro de uma organização exige, para além do conhecimento técnico e do domínio de um conjunto de novas ferramentas, o domínio de um conjunto de competências comportamentais, que são comummente designadas por “soft skills”.

Efetivamente, as atuais organizações acreditam hoje que um bom desempenho profissional depende da conjugação das competências técnicas e comportamentais, o que maximizará a capacidade dos indivíduos para estabelecerem relações de  confiança dentro da organização e com as pessoas que com estas se relacionam, conquistando, por esta via, um reconhecimento interno e externo que acabará por ter como consequência ganhos organizacionais de qualidade e rapidez.

Em que se traduzem, então, estas competências comportamentais? As competências comportamentais são, no fundo, as aptidões sociais que permitem ao individuo adotar as atitudes mais adequadas para lidar com as situações com que se vai deparar no seu dia-a-dia.

Um indivíduo talentoso pode ser reconhecido pela sua forte especialização técnica, mas, em termos organizacionais, são igualmente relevantes as suas competências para lidar com a ambiguidade, para se adaptar a situações novas ou para ultrapassar dificuldades. Será, assim, pela forma como responde às solicitações, como expõe as suas ideias, como partilha a informação, como inova, como se empenha e como se envolve nos objetivos para atingir os resultados esperados que será avaliado no seu desempenho. Serão, pois, estas características que irão permitir que o indivíduo se distinga dos outros, não por via da superioridade mas por via da diferença dos resultados obtidos.

Elevados níveis de competências técnicas abrem portas para projetos profissionais, mas se faltarem competências comportamentais há o risco de estes falharem. Assim, colocar a atenção nas relações humanas e nos seus aspetos básicos, como a confiança, a comunicação, a ética e a boa conduta é essencial para aqueles que querem progredir.

A atual tendência das organizações vai, pois, no sentido de procurar indivíduos dotados de elevadas competências técnicas mas que também possuam um conjunto de competências sociais, tais como, elevada ética traduzida em comportamentos respeitosos, solidários e tolerantes, e que demonstrem uma elevada capacidade de estabelecerem relações de confiança dentro e fora da organização.

A criatividade e a capacidade para identificar oportunidades e implementar novos projetos é também valorizada.

A perceção que existe é a de que a atual formação de candidatos a advogados proporcionada diretamente pela Ordem dos Advogados, para além de não cobrir as questões relativas às competências sociais, continua, quase exclusivamente, virada para preparar os candidatos à advogados para o exercício do mandato forense. Porém, a realidade da advocacia vai hoje muito para além da prática forense ou da consulta jurídica, sendo certo que uns mais que outros menos, mas a verdade é que todos os despendem inúmeras horas do seu tempo em ambientes de negociação, sem que sejam objeto de qualquer preparação específica para o efeito.

Estas realidades aconselham, em nossa opinião, que a Ordem dos Advogados repense o núcleo de matérias em que dá formação e assuma um maior protagonismo na formação dos candidatos a advogados. Só isto permitirá não apenas assegurar uma maior uniformidade na formação dos candidatos, como assegurar-lhes formação num conjunto de matérias, nomeadamente as das competências comportamentais, que mais dificilmente poderão ser asseguradas diretamente pelos patronos.

Afigura-se-nos importante, desde logo, começar por fazer incluir nos programas de formação dos Centros de Estágio da Ordem dos Advogados ações de formação para preparar os candidatos para atuarem não apenas em tribunal, mas, igualmente, em ambientes de negociação.

Formar advogados para poderem atuar em ambientes de negociação implica prepará-los para saberem participar em reuniões, para saberem comunicar eficazmente e de forma assertiva, para manterem o equilíbrio em situações adversas e, sobretudo, para se manterem focados na resolução do problema.
Igualmente importante é que os programas de formação sirvam também para sensibilizar os clientes para a preocupação com a satisfação dos cliente, para entenderem as preocupações e o negócio deste, para serem objetivos, para serem hábeis na comunicação, para atuarem com diplomacia, para serem pró-ativos e para agregarem conhecimentos complementares e relevantes para a área do direito na qual irão trabalhar.

A formação dos candidatos a advogados proporcionada pelos Centros de Estágio da Ordem dos Advogados deveria, como dissemos, passar a incluir também formação na área comportamental, com vista ao desenvolvimento dos denominados “soft skills”, da respetiva inteligência emocional - fator cada vez mais valorizado - de forma a preparar estes candidatos para responderem adequadamente à realidade do mercado atual.

Este tipo de formação comportamental permitiria contribuir não apenas para um maior desenvolvimento pessoal dos candidatos como dotá-los das competências que irão necessitar para terem um desempenho adequado dentro de uma organização.

Dada a especificidade da formação comportamental, cremos que a mesma deveria ser assegurada através de profissionais especializados vindos, nomeadamente, de áreas fora do direito.

Não chega, portanto, para formar adequadamente candidatos a advogados aptos a entrarem no mercado de trabalho e a exercerem advocacia numa das muitas formas em que esta atividade é hoje exercida, esperar que a sua formação se cumpra por via de uma cada vez mais longa e penosa - porque os estágios também estão cada vez mais longos e penosos, quase mais até do que uma licenciatura em direito - observação da forma de exercício da advocacia por parte dos respetivos patronos.

Isto dito, cumpre olhar agora um pouco para os conteúdos das formações técnica e comportamental.
A formação das competências técnicas deverá ter como base o conhecimento adquirido na licenciatura em direito mas agora direcionadas para a prática da advocacia.

Como competências técnicas indispensáveis ao exercício da profissão de advogado identificaríamos, desde logo, os conhecimentos de direito, substantivo e adjetivo. Estes conhecimentos deverão ter-se por adquiridos no âmbito da licenciatura em direito, não cumprindo à Ordem dos Advogados repetir o que é suposto ter sido feito pelas Universidades. Discorda-se assim da existência de formação específica em matérias de direito substantivo tais como, por exemplo, em Direito das Sociedades, em Direito Comunitário ou Direito Constitucional.

Existindo a desconfiança de que há deficiências ou insuficiências na formação por parte de algumas Universidades – como o atual Regulamento de Estágio parece assumir no seu preâmbulo – então aquilo que se nos afigura competir à Ordem é dar disso conhecimento ao Ministério da Educação para que atue em conformidade, não é montar programas de formação para suprir essas alegadas insuficiências, dado crermos que todos os esforços que a Ordem possa querer fazer no sentido de integrar tais matérias nos seus programas de formação serão uma duplicação de temas para um conjunto alargado de formandos e necessariamente insuficientes para o desiderato.

Acresce que uma tal repetição de matérias irá ainda implicar que se descure o ensino de outros conhecimentos. No limite, competirá ao mercado fazer a destrinça entre os profissionais que têm os conhecimentos suficientes das matérias de direito que deverão ser ministradas pelas Universidades dos que dela carecem e, por esta via indireta, ser o mesmo mercado a fazer pressão sobre as ditas Universidades para que adotem planos curriculares conformes com as necessidades do mundo real.

O papel da Ordem deverá ser então fixar-se na formação das competências técnicas que não é esperado que os licenciados em direito, por esse simples facto, possuam.
Nestas matérias integraríamos as seguintes:
a) Práticas e tramitação processuais juntos dos diversos tribunais, incluindo cíveis, de comércio, tributários, administrativos, laborais, constitucional, europeu e dos direitos do homem;
b) Técnicas de inquirição de testemunhas;
c) Mecanismos alternativos de resolução de conflitos, incluindo mediação e arbitragem;
d) Registos e notariado incluindo atos de certificação que podem ser praticados por advogados e forma de os executar;
e) Estrutura e elaboração de contratos;
f) Economia e gestão direcionadas para o exercício de uma profissão liberal, seja ela exercida em prática individual ou no âmbito de uma sociedade de advogados - incluindo conceitos de “marketing” e de desenvolvimento de negócio;
g) Ferramentas ao serviço do direito, incluindo, nomeadamente, Citius, Portal da Empresa, Informação Empresarial Simplificada, Publicações Ministério da Justiça, DGRN, Portal do Ministério da Justiça e área reservada do sítio da Ordem;
h) Inglês jurídico – cada vez mais essencial dada a natureza de língua franca que o inglês vem assumindo e a quantidade de crescente de acordos que se regem por direitos anglo-saxónicos e redigidos nessa língua;
i) Usos e costumes da profissão;
j) Deontologia profissional.

No que respeita ao desenvolvimento de competências comportamentais, entendemos que a Ordem deveria implementar ações de formação que abarquem as seguintes áreas:
a) Falar em público e fazer apresentações;
b) Técnicas de negociação;
c) Planeamento e gestão do tempo;
d) Desenvolvimento do trabalho em equipa;
e) Desenvolvimento da inteligência emocional;
f) Gestão eficaz do stress;
g) Comunicação eficaz;
h) Contribuir positivamente em reuniões e grupos de trabalho;
i) Reconhecer e definir problemas, identificando soluções para os equacionar;
j) Imagem e impacto pessoal.

À laia de conclusão, dir-se-á, em função do que anteriormente se disse, que urge proceder a um modificação dos conteúdos da atual formação inicial e complementar dos candidatos a advogados por forma a evitar que todo o esforço e custo assumido com a formação, bem como o tempo nela despendido pelos candidatos a advogados, se revele, a final, pouco eficaz para atingir os objetivos por ela visados.

Lisboa, 28 de novembro de 2012

António Soares

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