Melhoria das Condições do Exercício da Advocacia e Combate à Procuradoria Ilícita

Uma Perspectiva Mais Para Reflexão 


A procuradoria ilícita vem, há décadas, assumindo contornos e proporções que justificam uma profunda preocupação na Ordem dos Advogados e em toda a classe sobre o tema.

Tal sucede porque a procuradoria ilícita tem perpassado toda a sociedade e a actividade comercial e económica com total bonomia e permissividade dos entes públicos e dos cidadãos em geral, sem que, no entanto, os Advogados assumam um papel determinante na sua erradicação.

A aceitação da procuradoria ilícita, encarada como uma actuação comum e financeiramente menos onerosa para os que a ela recorrem, tem permitido a sua disseminação e cristalização na teia das relações entre cidadãos, entre estes e as empresas e, de sobremaneira, com as entidades administrativas.

Para essa errada convicção generalizada tem, não raras vezes, contribuído a actuação dos grandes grupos económicos e financeiros, v.g. bancos, seguradoras, empresas de recuperação de crédito e demais entidades financeiras que, muitas vezes ao arrepio das regras vigentes e por vezes com a complacência da própria Ordem, proporcionam uma prestação de serviços, cuja competência funcional, por atribuição legal, incumbe aos Advogados.

Numa época em que a defesa e conquista de mercados assumem relevo inusitado, cabe à Ordem assumir o seu papel, de liderança na defesa, salvaguarda e conquista do mercado que deve estar reservado aos seus associados, os Advogados.

Sem embargo de a alguns poder chocar o que acima se expôs, entendo dever deixar duas linhas de orientação filosófica que o alicerçam:

a) Por um lado, a existência da Ordem justifica-se para e pelos Advogados.

Antes de qualquer outra razão, ainda que só por uma questão meramente pragmática e de génese, a linha orientadora da actuação da Ordem deve ser a defesa dos direitos, interesses e actos próprios dos Advogados,

Importando, a este propósito, igualmente assinalar que também os Advogados são cidadãos – circunstância tantas e tantas vezes esquecida, e mesmo ignorada – e, como tal, também eles têm o direito de ver a entidade que os representa pugnar firmemente pela defesa, desenvolvimento e aprofundamento dos seus direitos e interesses, com alargamento das suas competências funcionais, tal como se verifica com todas as restantes associações profissionais - Ordens e Câmaras corporativas - em Portugal.

De forma lapidar, porque o assunto justificaria análise mais aprofundada e exaustiva, o “desinteresse” pela defesa dos direitos e salvaguardas dos advogados - incluindo-se aqui o direito de continuarem a exercer a sua profissão de uma forma funcional, mas também economicamente digna – tornaria a Ordem uma entidade destituída de sentido e carecida de fundamento enquanto associação representativa de uma classe profissional.

b) Por outro lado, e na esteira do exposto, justifica-se cabalmente o abandono imediato dos preconceitos, muitas vezes tão-só de retórica, no que tange à visualização e consideração de um mercado da Advocacia.

O entendimento de que os conceitos “mercado” e “Advocacia” são realidades antagónicas deverá, em definitivo, abandonar-se a nível doutrinário, pois que na prática esse (pre)conceito antigo se encontra, de todo, arredado.

Importa assim facultar a todos os Advogados, e não só a algumas corporações do Direito, o acesso à prática da Advocacia, como um modo digno, viável e economicamente sustentável de exercer a sua profissão, de forma honrada e respeitada.

E importa igualmente que a Ordem assuma, de modo claro, saudável e sem preconceitos, que o exercício digno da Advocacia impõe a existência de um mercado regido por princípios e regras transparentes e duradouras.
Retomando o tema da procuradoria ilícita, e postas estas considerações de ordem geral, é de realçar que algumas actividades, como por exemplo a das empresas de recuperação de crédito, o exercício da procuradoria por parte dos bancos e das seguradoras, e da negociação por estas últimas directamente com os titulares de direito a indemnização desacompanhados de advogados, devem ser práticas merecedoras da devida censura, já que, manifestamente, se fundam e alicerçam num, maior ou menor, desconhecimento e vontade não esclarecida dos cidadãos envolvidos.

Como é óbvio, a tomada de uma decisão por parte dos cidadãos, sem consciência cabal dos seus direitos e obrigações, estará sempre inquinada no próprio processo da formação da vontade e, como tal, inconsciente.

Assistimos a uma reforma de desformalização dos actos v.g. desnecessidade de escritura pública, que, à primeira vista, poderia significar a agilização dos processos, a sua menor oneração e, portanto, um benefício para os cidadãos.

Porém, tais reformas não foram acompanhadas pela criação de uma estrutura garantística da legalidade - formal e material - e integridade dos actos a praticar.

Tal ausência de garantias levou a que se assistisse a um acréscimo da violação de direitos dos cidadãos e da prática de actos abusivos, mormente na área dos actos societários.

Veja-se a este propósito, por exemplo, a consignação que o próprio Código do Registo Comercial faz dos registos feitos por depósito, desconsiderando a presunção de veracidade dos mesmos.

Nesta área, fácil seria contornar as dificuldades assinaladas, adoptando-se medidas concretas, sem necessidade de grandes reformas jurídicas, traduzidas, por exemplo, na obrigatoriedade de, para efeitos de registo, todos os contratos e actas suporte dos actos praticados deverem ser feitos por Advogado e devidamente chancelados pelo mesmo através de selo branco ou vinheta.
Só dessa forma tais actos poderiam ser apresentados a registo, sendo devidamente controlada a sua conformidade legal, material e autoria.

O mesmo se diga relativamente aos actos para os quais foi dispensada a respectiva escritura pública, v.g. contratos de arrendamento comercial, trespasses e cessões de exploração comercial e, por maioria de razão, relativamente aos contratos promessa, que inúmeras questões têm suscitado, na maior parte dos casos porque elaborados por quem não devidamente habilitado para o efeito, nomeadamente pelas agências de mediação imobiliária.

É indubitável que os actos acima nomeados, somente a título exemplificativo, são actos que envolvem relevantes direitos dos cidadãos, cuja repercussão nas suas vidas muitas vezes assume imensas e graves proporções.

Não obstante a forte corrente político - doutrinária existente no sentido do aumento dos meios alternativos de resolução de conflitos, certo é que, não assumindo contornos de procuradoria ilícita, não só tem vindo a desproteger os cidadãos na defesa dos seus direitos, uma vez que é irrealista a independência e a isenção de uma entidade neutra perante a apresentação das versões antagónicas por quem não preparado para o efeito – existindo inevitavelmente sempre uma parte com mais preparação do que outra –,

Como também tem vindo a esvaziar paulatinamente o elenco funcional dos advogados, reduzindo-os, não amiúde, e quando no processo intervêm, a meros “preenchedores de formulários”, numa redução inadmissível e injustificável da sua função de pesquisador e estudioso do Direito.

Toda esta corrente, que sumariamente se acaba de descrever, levará inevitavelmente à degradação da função e intervenção dos Advogados, com inquestionável corrosão da capacidade de defesa dos direitos pelos cidadão e, paralelamente, à contracção do mercado da Advocacia, tendo como consequência a erradicação de muitos Advogados das suas funções e o controlo do mesmo por, alguns, poucos grupos / corporações do Direito.

O evitar de tais consequências e percurso deverá ser o núcleo central da actuação da Ordem dos Advogados, através da defesa e salvaguarda dos interesses destes, garantindo e permitindo que a Advocacia em Portugal continue a revestir as características de pluralidade, diversidade e distinção, com a inerente pluralidade de oferta ao Cidadão.

Retomando o tema aqui trazido,

A Melhoria das Condições do Exercício da Advocacia só será possível com a afirmação da Advocacia como fundação do Estado de Direito e com (re)definição, aprofundamento e alargamento dos actos próprios dos Advogados.

E o Combate à Procuradoria Ilícita só será consequente com (re)definição e clarificação do elenco funcional dos Advogados, e se com absoluta intransigência na actuação contra a prática abusiva de actos que lhes estão exclusiva, expressa e legalmente reservados.

O progressivo desapossamento dos Advogados dos seus actos próprios, e o esvaziamento substancial dos próprios actos em nome de um simplismo absolutamente inaceitável, por outras entidades e até pelo próprio Estado, sem uma reacção urgente e exigente da Ordem, com reclamação da atribuição exclusiva de determinadas competências e para a prática de determinados actos, esvaziará de sentido, e até de materialidade, o combate à procuradoria ilícita.

É, pois, facilmente apreensível que a melhoria das condições do exercício da advocacia assenta, antes de mais, na rigorosa definição e intransigente defesa dos actos próprios dos advogados.

A progressiva depreciação do valor do acto jurídico e desconsideração da profissão, com a transferência de muitas tarefas legais para não juristas, é um cenário preocupante.


A Ordem tem um papel fundamental na reflexão sobre o presente e o futuro da Advocacia perante o actual quadro de crise económica e de “simplificação” dos procedimentos administrativos e judiciais, que colocam em crise a essência e fundamentos do Estado de Direito e da prática da Advocacia.

Deixemo-nos de dilemas, indecisões e de respostas politicamente correctas:

O chamado progresso tem-se traduzido num objectivo e progressivo esvaziar da profissão de Advogado tal como a conhecemos.

Como já defendi, os actuais problemas da Advocacia – das gerações mais jovens, e não só – são os números e os factos: somos muitos e vivemos dominados por uma crise profissional, ideológica e económica que há muito se arrasta e, pior, ainda sem fim à vista.

Prospectivar uma solução para o actual estado de verdadeira necessidade em que vivemos e pensar uma linha de acção, presente e futura, depende da resposta de todos e cada um dos Advogados.

A mudança é uma inevitabilidade.

Como Classe, temos uma de duas escolhas: despertar e aceitá-la, nela participando e contribuindo para os seus princípios enformadores, ou, pelo contrário, ignorá-la. Porém, se enquanto Classe nada fizermos, outros por nós o farão.

À Ordem cabe estimular o debate e encabeçar este combate ao progressivo esvaziamento e degradação da Advocacia.

O combate isolado à procuradoria ilícita não é bastante para a melhoria das condições do exercício da Advocacia.

Só a mudança de paradigma no exercício da Advocacia, sem nunca esquecer os pressupostos do exercício da profissão de Advogado e a ética que a deve nortear, trará uma renovada perspectiva da profissão e da sua missão.

A reflexão impõe-se, mas urge agir, pois o futuro da Advocacia e dos Advogados é hoje e depende absolutamente da adaptação a esta nova ordem.

Cabe à Ordem assumir, claramente, em definitivo e com determinação, o seu papel na defesa dos direitos, interesses e actos próprios dos Advogados e da Advocacia.

A melhoria das condições do exercício da Advocacia passa pelo combate à procuradoria ilícita, mas se nada for feito pela afirmação e (re)definição dos actos próprios dos Advogados, de pouco servirá e nada mudará.

Lisboa, 31 de Outubro de 2012

Maria da Conceição Botas

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