O GOVERNO DAS AUTORIDADES REGULADORAS INDEPENDENTES

§ 1.º Autoridades reguladoras independentes e sistema de justiça


Há uma tripla dimensão, abaixo explicitada, que deve ser atendida para uma compreensão da relação das autoridades reguladoras independentes com o actual sistema de justiça.

As autoridades reguladoras independentes são, em primeira linha, competentes para a aprovação de textos normativos, de conteúdo regulamentar, cabendo-lhes ainda a tomada de decisões interpretativas e a emissão de indicações recomendatórias. São, neste âmbito, protagonistas de uma regulação de proximidade, dada a sua especialização técnica em função da área regulada e, bem assim, a sua vocação natural e congénita para a protecção dos consumidores, nos limites reconhecidos por lei.

As autoridades reguladoras independentes apresentam-se como órgãos aplicadores do Direito, conquanto que os actos administrativos por estas praticados sejam sindicáveis judicialmente. O caudal de decisões aplicativas por estas adoptadas – relevante do ponto de vista quantitativo e qualitativo - reclama a maior atenção1.

Por fim, estas entidades agem enquanto autoridades fiscalizadoras da aplicação do regime jurídico de cada área económica abrangida, seja ao contribuir preventivamente para a diminuição de situações de incumprimento, seja ao actuar a posteriori na perseguição infraccionatória dos delitos verificados no seu perímetro de actuação.

O que importa assinalar, nesta sede, é que cada uma das descritas dimensões de ligação das autoridades reguladoras independentes ao sistema de justiça determina implicações directas no tocante à conformação da sua estrutura organizativa, de direcção e estruturação decisória – isto é: ao governo de tais autoridades.
Neste pressuposto, a proposta deste contributo é a de proceder a um enunciado sumário2 das possíveis vias de evolução do regime das autoridades reguladoras independentes, no que respeita ao respectivo governo.

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1 Para uma ilustração, veja-se o caso do fluxo regulatório do Banco de Portugal, por mim analisado em A renovação do Direito bancário no início do novo milénio, em PAULO CÂMARA/ MANUEL MAGALHÃES (org.), O Novo Direito Bancário, (2012), 66-70.
2 Para desenvolvimentos, reenvia-se para PAULO CÂMARA/ GRETCHEN LOWERY, The Internal Governance Structure of Financial Regulatory Authorities: Main Models and Current Trends, em MARTA TAVARES DE ALMEIDA/   LUZIUS MADER (ed.), Proceedings of the 9th International Association of Legislation Congress. Quality of Legislation – Principles and Instruments, Nomos Verlag (2010); quanto à supervisão financeira, cfr. os meus Supervisão e Regulação do Mercado de Valores Mobiliários, em Direito dos Valores Mobiliários, Vol. VIII (2008), 39-64; Regulação e Valores Mobiliários, em EDUARDO PAZ FERREIRA/ LUÍS SILVA MORAIS/ GONÇALO ANASTÁCIO (org.), Regulação em Portugal: Novos Tempos, Novo Modelo?, (2009), 127-186.


§ 2.º Independência


O modelo de governo das autoridades reguladoras aqui tratadas toma como pedra angular a sua independência. Fala-se aqui de independência enquanto impermeabilidade decisória a interferências públicas ou privadas. A independência, assim entendida, desdobra-se em três principais sentidos:
- perante o poder político;
- perante os administrados;
- como órgão de aplicação do Direito.

Estas três vertentes serão percorridas, a passo largo, de seguida.

A autoridade reguladora deve ser, desde logo, independente perante o poder político. A sua autonomia institucional, funcional e financeira revela-se crucial para a tutela da confiança no sistema jurídico e para a credibilidade e eficácia da acção supervisora. Esta independência não pode ser posta em causa com os modelos de designação de titulares de cargos públicos, como à frente se explicita3. A autonomia financeira, de seu lado, implica a capacidade de geração de recursos necessários para que seja prosseguida uma actuação fiscalizadora de qualidade, apetrechada com colaboradores tecnicamente preparados.

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3 Cfr. infra, § 3.º.

A independência da autoridade reguladora perante o poder político também serve o cumprimento dos princípios de imparcialidade e de igualdade, uma vez que o Estado por vezes actua no mercado – nomeadamente em operações económicas (v.g. de privatização) ou através da titularidade de participações sociais em sociedades reguladas – não podendo nesse âmbito merecer qualquer tratamento de excepção.

Em suma, nesta vertente, a independência manifesta-se em três principais sentidos: autonomia institucional, administrativa e financeira da autoridade reguladora; impermeabilidade a influências políticas no processo investigativo ou decisório desta; e não-discriminação por motivos políticos.

Em tempos de crise, o segundo dos sentidos apontados – a independência financeira – é afectada por restrições importantes. A um tempo, não pode deixar de se considerar preocupante a prática, reiterada na recente Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, no sentido da transferência de saldos de gerência e resultados transitados das autoridades reguladoras4. A outro tempo, é de notar os condicionalismos crescentes na estrutura de pessoal das autoridades reguladoras. Vale lembrar, a propósito, o relatório oficial de 2012 sobre as causas da crise, da autoria do departamento do Tesouro britânico5. O relatório, coordenado por Sharon White, aponta como uma das falhas mais relevantes do Tesouro a falta de meios humanos com experiência e know how suficientes para estarem preparados para lidar com a crise. Na base desta conclusão estão as remunerações baixas pagas pelo Treasury, em comparação com o restante sector público. O estudo recomenda directamente, como política futura: "ensuring that pay and rewards policy is designed to enable the Treasury to attract and retain people with the right skills". Apesar de esta mensagem não ser exactamente popular em tempos de austeridade, não deixa de se apresentar como relevante este diagnóstico de que a remuneração das autoridades reguladoras encontra uma ligação estreita à qualidade da regulação e da supervisão.

A autoridade reguladora deve ainda gozar de independência perante os seus administrados. Neste sentido, a independência manifesta-se na aptidão para a autoridade reguladora desenvolver por si processos decisórios e investigativos que não dependam dos administrados e na vinculação ao princípio da imparcialidade, a que deve obediência toda a actividade administrativa. Daqui decorre que, para evitar a “captura” dos reguladores, a sua relação com os administrados há-de processar-se, na expressão britânica, at arm’s length6.

Há prescrições em matéria de conflito de interesses que curam de igual maneira desta concretização da independência.

Tal como na vertente anterior, esta acepção da independência revela-se não apenas no regime normativo mas também no exercício permanente da actividade. Supõe, em todas as vertentes da actividade da autoridade - na regulação, na supervisão, na investigação, na cooperação, na afectação de recursos e nos processos sancionatórios - a coragem na tomada de decisões difíceis e a capacidade de suportar pressões dos participantes do mercado, em homenagem ao primado da lei.

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4 Art. 8.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho. Como antecedente próximo, refira-se o Decreto-Lei n.º 241-B/2004, determinando que constituem receita geral do Estado de 2004 85% dos saldos de gerência existentes em 31 de Dezembro de 2003 das autoridades reguladoras.
5 Review of HM Treasury’s management response to the financial crisis, (Março 2012), disponível em http://www.hm-treasury.gov.uk/d/review_fincrisis_response_290312.pdf .
6 Sob pena de desvio de poder, o que pode determinar a ilegalidade do acto praticado com défice de independência, como assinala PAULA COSTA E SILVA, As Autoridades Independentes. Alguns Aspectos da Regulação Económica numa Perspectiva Jurídica, O Direito III (2006), 541-569 (552-553). 

§ 3.º Designação de titulares dos órgãos directivos


Neste âmbito releva considerar, como prioritário, o tema da designação de titulares de órgãos dirigentes de autoridades reguladoras independentes, que em Portugal é merecedor de análise cuidada.

Entre nós, vigora como regra o modelo de designação governamental dos titulares de órgãos directivos de autoridades reguladoras7. Trata-se de uma opção que confere legitimidade política aos titulares de cargos dirigentes nestas autoridades.

Actualmente, porém, o modelo de designação governamental deve considerar-se em crise. Este modelo, com efeito, implica o risco de designação de dirigentes (nomeadamente com currículo político) sem formação técnica na área para que foram designados. Tal provoca consequências indesejáveis a dois níveis: a um tempo, determina uma erosão na vocação especializada das autoridades reguladoras independentes8; a outro tempo, diminui – em maior ou menos intensidade – a sua independência9.

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7 Nas autoridades administrativas independentes não dotadas de poderes regulatórios detecta-se uma maior diversidade de modelos de designação, como ilustrado por CARLOS BLANCO DE MORAIS, As Autoridades Administrativas Independentes na Ordem Jurídica Portuguesa, ROA (2001) 137-141.
8 Cfr. supra, § 1.º.
9 Cfr. supra, § 2.º.

Considera-se que a saída mais adequada para a superação deste quadro é a do aprimoramento do modelo de designação governamental através de duas vias complementares:
- o reforço do prévio escrutínio público;
- a utilização progressiva de técnicas de selecção meritocráticas.

O reforço do escrutínio público pode implicar audições a prestar pelos titulares indigitados na Assembleia da República, perante a Comissão parlamentar adequada a cada área. As audições deveriam versar sobre o percurso curricular dos candidatos e os seus projectos de actuação no mandato para que podem ser designados. À intervenção parlamentar, contudo, não deve ser atribuída natureza decisória, dado o risco inerente de politização indevida destas autoridades.

Nas autoridades reguladoras de maior relevância politico-económica (pense-se, por exemplo, no Banco de Portugal e na Autoridade da Concorrência) deve ainda considerar-se, cumulativamente, a possibilidade de a designação ser feita pelo Presidente da República, sob proposta governamental. Tal representaria um crivo acrescido de adequação do perfil do dirigente ao cargo a ocupar.

A selecção meritocrática é favorecida se envolver o recurso a concursos públicos para designação dos candidatos – solução que é crescentemente utilizada em jurisdições estrangeiras. Esta saída apresenta vantagens nítidas, por propiciar uma escolha mais ampla de candidatos e, por essa via, por potenciar o aparecimento de candidatos melhor preparados.

De outro lado, tem ganho proeminência o papel das comissões independentes de designação de membros de órgãos sociais – sejam internos ou externos -, de modo a reforçar a colegialidade e o carácter profissional das decisões, favorecendo critérios de mérito, e por forma a robustecer a continuidade das organizações, sobretudo em processos de transição de liderança.

Qualquer destas vias deve ser explorada no sistema jurídico-organizativo português, em benefício de uma maior eficiência e promoção da optimização de funcionamento das autoridades reguladoras.

§ 4.º Legalidade e celeridade decisória


As autoridades reguladoras sujeitam-se ao princípio da legalidade, em todas as suas vertentes. Tal respeita quer quanto ao conteúdo material das decisões adoptadas, quer quanto ao processo decisório a adoptar, nomeadamente quanto aos prazos para a emissão de decisões.
A acrescer, importa reconhecer um princípio de celeridade decisória, a impender transversalmente sobre as autoridades reguladoras independentes.

A celeridade decisória repercute-se em dois fundamentais âmbitos. De um lado, em actos administrativos – sobretudo de cariz autorizativo -, é fundamental contar com uma apreciação célere das autoridades reguladoras.

De outro lado, é fundamental a celeridade na instrução de processos sancionatórios. Caso a perseguição infraccionatória seja fundada, a distância temporal entre acto ilícito e a aplicação da sanção diminui largamente o efeito contramotivador e preventivo da pena; de outro lado, a haver arquivamento dos processos, uma decisão rápida impede o prolongamento de situações de suspeição e de censura social.

§ 5.º Fiscalização


Um dos aspectos mais negligenciados entre nós quanto ao governo das autoridades reguladoras independentes respeita à sua fiscalização interna.

É certo que as autoridades reguladoras independentes são dotadas de órgãos de fiscalização, cuja designação varia – conselho de auditoria10, comissão de fiscalização11 ou fiscal único12.
Por hábito, as comissões de fiscalização não têm mandatos precisos quanto aos respectivos poderes de actuação. Na prática, além disso, a sua actuação reflecte  preocupações centradas na gestão financeira das autoridades, em particular quanto à economia de gastos e na poupança de recursos. É as mais das vezes nula (ou muito escassa) a atenção dedicada aos processos decisórios utilizados ou – menos ainda – no sentido material das decisões adoptadas pelas autoridades fiscalizadas.

O défice maior prende-se com a inexistência de uma contraposição entre membros executivos e membros não executivos nos órgãos directivos de autoridades reguladoras independentes. A presença de membros não executivos nos órgãos de administração favoreceria a independência decisória, o apuramento estratégico das autoridades e serviria como constante factor desafiador do desempenho dos membros executivos.

Por último, importa revitalizar os conselhos consultivos, que podem ter um papel decisivo no envolvimento da indústria e dos consumidores em decisões estratégicas das autoridades reguladoras independentes. A imposição de um dever de divulgação das actas das reuniões dos conselhos consultivos poderia, neste contexto, revelar-se uma medida simples para incrementar a eficácia e a efectividade da actuação destes órgãos consultivos no governo das autoridades reguladoras.

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10 Banco de Portugal: art. 41.º-45.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal.
11 CMVM: arts. 16.º-19.º do respectivo Estatuto.
12 Autoridade da Concorrência: arts. 23.º-25.º dos respectivos Estatutos.

§ 6.º Transparência


Às autoridades reguladoras independentes aplicam-se os pilares centrais da transparência administrativa. Para citar apenas alguns exemplos, refiram-se:
- o direito à informação sobre os procedimentos administrativos (arts. 61.º-65.º CPA);
- o dever de prévia audiência dos interessados perante projectos de decisões que os possam afectar (arts. 100.º-103.º CPA);
- o dever de fundamentação de actos administrativos (arts. 124.º-126.º CPA);
- o regime de acesso aos documentos administrativos13, que faculta amplo acesso aos documentos na posse das autoridades reguladoras independentes.

A complementar as regras já em vigor, é importante reforçar a transparência exibida em processos de consulta pública a preceder intervenções normativas por parte das autoridades reguladoras.
A consulta pública em processos de regulação cumpre três funções importantes:
- função de legitimação: fazer preceder intervenções normativas de processos de consulta pública aumenta a possibilidade de se lograrem a final soluções mais equilibradas e justas;
- função de transparência decisória: os motivos que conduzem à adopção de intervenções normativas ganham maior clareza se apreciados os competentes projectos de regulamentos, acompanhados da competente nota justificativa;
- função de pedagogia ao mercado: o incremento de processos de consulta cria o hábito de resposta por parte dos administrados e, com isto, favorece a reflexão.

Estes processos têm registado em Portugal resultados crescentemente encorajadores. O seu âmbito, embora centrado em intervenções regulamentares, foi já alargado à preparação de intervenções legislativas e à recolha de orientações para a tomada de posição na discussão de textos comunitários. Importa convertê-lo em prática regulatória sistemática, não apenas em relação a todas as autoridades reguladoras, mas também quanto a textos legislativos de relevo, seja de iniciativa governamental ou parlamentar.

Há, porém, cautelas particulares a observar no manuseio destes processos. Em causa está o risco de assimetria nas entidades que respondem, dado que a indústria é usualmente mais proactiva que os representantes dos comnsumidores. A leitura dos resultados da consulta pública não pode descurar este aspecto, sob pena de um enviesamento crónico das conclusões firmadas. A consulta pública constitui um auxiliar da regulação, e não um substituto desta. Mas os méritos deste expediente consultivo sobrelevam claramente as suas limitações.

Cabe, por último, frisar que os processos de consulta pública devem ser levados até ao seu termo, em cumprimento de todos os deveres informativos correspondentes. Assim, importa conceder divulgação pública, não apenas ao projecto normativo de consulta pública, mas também aos comentários dos administrados - salvo quando os mesmos sejam objecto de pedidos de confidencialidade. Por fim, deve ser feita divulgação atempada e fundamentada aos resultados da consulta pública e ao acolhimento, total ou parcial, ou não acolhimento, por parte da autoridade reguladora, das sugestões recebidas ao longo do processo.

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13 Em referência está a Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto.
Paulo Câmara*
*Docente universitário (Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Instituto dos Valores Mobiliários, Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto e Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal) e Advogado (Sérvulo & Associados – Sociedade de Advogados). Membro do Governance Lab.

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