FORMAÇÃO CONTÍNUA DO ADVOGADO – um direito ou um dever?

1. INTRODUÇÃO

A formação profissional constitui, a par com a disciplina, um dos vetores essenciais da existência da Ordem e do próprio princípio da autorregulação. Cabe à Ordem dos Advogados, enquanto associação de direito público, com a competência para regular o exercício da profissão de Advogado e exercer, em exclusivo, a disciplina sobre a sua atividade, assegurar estes dois vetores essenciais: formar e regular, ou seja, ministrar a formação (inicial e contínua) e exercer a disciplina.

A formação contínua é um dever e uma necessidade. Desde logo, porque é um dever que se impõe ao advogado, em diversos planos normativos, mas a cada vez mais intensa atividade legiferante do Estado impõe a atualização de conhecimentos, por parte do Advogado, como uma necessidade fundamental da sua capacidade profissional.

Do ponto de vista interno, imediato, o Advogado está obrigado a manter um permanente conhecimento atualizado das regras e técnicas da sua profissão, mas também do mundo que o rodeia e das realidades em que se desenvolve a sociedade.

Este dever é consubstanciado pelo art.86º, al. i) do EOA, que determina, entre os deveres do Advogado para com a Ordem dos Advogados, “Promover a sua própria formação, com recurso a ações de formação permanente, cumprindo com as determinações e procedimentos resultantes da regulamentação a aprovar pelo Conselho Geral”.

Mas este mesmo dever, em si mesmo, não se satisfaz, pois que a formação que é exigida ao Advogado não se destina a satisfazer a sua sede de conhecimento e saber, antes procura preencher um bem maior, de interesse público, como o que expressam os arts.93º e 95º, n.1 b) do mesmo EOA. Trata-se do apuramento do saber jurídico que o Advogado deve sempre alcançar, permanentemente, para melhor cumprir o seu dever de assistir e defender os interesses e direitos dos seus clientes.

A nossa cultura nacional não assenta em tradições de grande rigor técnico nem de comprovado empenho formativo, antes se fundando num determinismo mediterrânico que destaca a capacidade de improvisar como um dos elementos essenciais da natureza lusitana.

Porém, uma sociedade em evolução num mundo cada vez mais global, não pode permanecer confiante nas capacidades inatas e não valorizadas de nos adaptarmos a circunstâncias, antes nos impondo um rigor metodológico na continuada formação e aperfeiçoamento das técnicas jurídicas e no saber das ciências da profissão.

2. ENQUADRAMENTO

Esta renovada assimilação de conhecimentos é, hoje em dia, uma imposição da própria lógica social de competitividade e exigência. Num mundo em constante mutação, enfrentando uma crise como há muito tempo não se experienciava, a formação profissional é, não só uma necessidade, como um dever de cada um, no sentido de garantir uma cada vez maior capacidade de fazer frente aos constantes desafios desse mesmo mundo em mutação. E são muitos os desafios, pois que a produção legislativa é frenética – por vezes até exagerada e inutilmente – colocando-nos quase diariamente perante novos regimes jurídicos e novas regras das mais variadas áreas económicas e sociais.

A própria União Europeia, tão exigente em matéria de critérios de especialização e formação, impõe a todos os níveis uma continua formação dos quadros de forma a garantir uma mais adequada competência nas diversas funções profissionais e sociais que integram o tecido profissional da economia europeia.
É neste âmbito que também os Advogados são alvo desta exigência, expressa no artigo 5.8 do Código de Deontologia dos Advogados Europeus, na sua versão aprovada pelo Conseil Consultif des Barreaux Européens (CCBE) na sua sessão plenária de 19 de maio de 2006.

Dispõe este normativo, sob a epígrafe “Formação profissional contínua”, que os “advogados devem atualizar e melhorar o seu nível de conhecimento e das suas competências profissionais, tendo em consideração a dimensão Europeia da sua profissão”. Esta disposição é mais clara do que a mera referência expressa no art.86º do EOA, acima citado, pois que enquadra o objetivo da formação contínua, ainda que circunscrito ao plano europeu da profissão.

Mas a verdade é que, mesmo no plano nacional, e no âmago da própria profissão, a formação contínua se fundamenta na necessidade de contínua atualização de conhecimento e de aquisição de competências, essenciais ao bom exercício da profissão.

É o que se extrai do enunciado no artigo 3.1 do mesmo Código de Deontologia dos Advogados Europeus, que no n.3 estatui que “o advogado não pode aceitar o patrocínio de uma questão para a qual saiba, ou deva saber, não ter a competência necessária, a não ser que atue conjuntamente com um advogado que tenha essa competência."

Este dever de competência acha-se hoje consagrado no nosso Estatutos (EOA) de forma muito semelhante, tendo sido influenciado na sua formulação pelo dispositivo europeu.

É o artigo 93º, cujo n.2 determina: “2 - O advogado não deve aceitar o patrocínio de uma questão se souber, ou dever saber, que não tem competência ou disponibilidade para dela se ocupar prontamente, a menos que atue conjuntamente com outro advogado com competência e disponibilidade para o efeito.”.

Este dever de competência, consagrado por razões de interesse público, destina-se a garantir que os serviços profissionais do Advogado, regulados pela sua Ordem como reiteração do princípio da autorregulação, são efetivamente assentes nos conhecimentos e experiência necessários à garantia de adequada qualidade e que esta pode ser sindicada pela via disciplinar, da competência da mesma Ordem.

3. O PANORAMA ATUAL

Se à Ordem compete assegurar, pela via do controlo disciplinar, que os advogados sob a sua jurisdição efetivamente cumprem o dever de competência, tem aquela o dever de assegurar a esses mesmos advogados o acesso à necessária formação contínua, desenvolvendo ações de formação destinadas ao permanente desenvolvimento e atualização dos conhecimentos dos advogados perante os diversos regimes legais e processuais. É o que resulta, entre outras, do disposto no art.3º do EOA, alínea d), mas também h) e i).
Esta ação vem sendo desenvolvida pelos Centros de Formação dos Conselhos Distritais e compreende-se no âmbito das competências fundamentais da Ordem dos Advogados. Com efeito, as principais atribuições da Ordem estão expressas nas primeiras quatro alíneas do art.3º do Estatuto:

“ a) Defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça;
 b) Assegurar o acesso ao direito, nos termos da Constituição;
c) Atribuir o título profissional de advogado e de advogado estagiário, bem como regulamentar o exercício da respectiva profissão;
 d) Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado, promovendo a formação inicial e permanente1  dos advogados e o respeito pelos valores e princípios deontológicos;”

______
1 Sublinhado nosso

Este desejo permanente de competência só se satisfaz com uma constante atenção às reformas legislativas e à busca incessante dos mais qualificados juristas nas diferentes áreas e ramos do Direito para ministrarem a formação adequada aos demais Colegas.

Uma palavra ainda para a formação inicial que se mostra essencial na preparação dos Advogados Estagiários para enfrentarem as exigências da profissão, uma vez alcançada a agregação. A experiência de mais de dez anos na formação de Advogados em gestação permite-nos garantir a essencialidade desta mesma formação, claramente identificável numa leitura atenta das provas escritas dos exames de agregação, onde é perfeitamente identificável quem frequentou e quem não frequentou essa mesma formação inicial.

As exigências da profissão não habilitam a maioria dos patronos, no dia-a-dia dos seus escritórios, a complementarem a formação prática resultante do fazer diário dos atos de Advogado com a necessária formação sustentada que, na formação inicial, se procura transmitir aos Estagiários.

Finalmente, importa ter em atenção a necessidade de reforçar os critérios de avaliação final, no momento em que a Ordem dos Advogados certifica os novos Advogados, emergentes da agregação no final do estágio. Isto sob pena de se emitir uma declaração pública enganosa, relativamente à capacidade profissional de novos Advogados.

4. PONTO DE PARTIDA

A formação vem sendo uma prática corrente na Ordem dos Advogados, muito em especial por parte dos Conselhos Distritais, merecendo destaque o trabalho meritório que vem sendo desenvolvido pelo Conselho Distrital de Lisboa, nos últimos 10 anos, mantendo permanentemente em ação a formação permanente, a par com a formação inicial dos jovens Advogados Estagiários.

Esta, por sua vez, para além de constituir uma necessidade indispensável à boa integração dos licenciados em direito no quadro da profissão de Advogado, é a forma de criar os primeiros laços de relação com a formação pela Ordem.

Mas a regulação da formação permanente carece de concretização, pois que enquadramento normativo é coisa que, como vimos, não lhe falta. Como regular. então, a eficácia da formação contínua?

Julgamos que só dotando de coercibilidade as normas a implementar se poderá lograr uma eficaz formação contínua de todos os Advogados Portugueses, pelo que se mostra necessária a criação de um regulamento alargado, que imponha a obrigatoriedade de frequência de ações de formação em diferentes áreas do direito ou mesmo da vida profissional do Advogado.

As temáticas não deverão limitar-se apenas à atualização de conhecimentos relativamente aos novos regimes legais em permanente mutação, alargando-se esta ação à reciclagem de outras áreas de regulação, e aqui apresenta-se como essencial a atualização dos conhecimentos da normação mais essencial do Advogado: o seu Estatuto.

A triste realidade mostra-nos que um elevado número de Advogados ignora – por inércia, desconhecimento ou autismo profissional – as regras elementares da profissão, razão pela qual se mostra adequado, e mesmo conveniente, a realização de ações de formação na área da Deontologia Profissional.

Outra área a merecer alguma atenção será a das novas tecnologias e das práticas de gestão profissional, que muito ajudaria os Advogados, numa época de crise profunda, a reciclarem os modelos de gestão da sua atividade profissional, rentabilizando meios e racionalizando custos.

5. CONCLUSÃO

Em todas estas áreas e por todas as razões invocadas, a formação contínua dos Advogados deve começar com a sua formação inicial e continuar ao longo do seu percurso profissional, permitindo-lhe uma permanente atualização de conhecimentos e melhoria de práticas, a para de uma constante reciclagem de métodos profissionais, dirigidos a uma melhor prática e a uma revista imagem do Advogado na sociedade.

Os aspectos que reputo de fundamentais no plano a formação, e não podendo dela dissociar a própria formação inicial como o primeiro passo da relação do Advogado com a sua formação profissional, são os seguintes:

- formação inicial;

- formação contínua na área das reformas normativas, através da atualização de conhecimentos jurídicos e práticas processuais, em conformidade com as atualizações legislativas;

- aperfeiçoamento de métodos e práticas profissionais;

 - formação de formadores e de avaliadores, com fixação de critérios uniformes na formação e avaliação dos Advogados Estagiários;

- reciclagem de conhecimentos na área da Deontologia Profissional, estendida ao quadro sancionatório – poderiam algumas decisões disciplinares incluir a frequência obrigatória de alguns destes cursos, como medida pedagógica essencial para uma melhor Advocacia.

Estas e outras medidas em conformidade serão sempre um dever da Ordem e um direito de todos e cada Advogado, para garantia de uma melhor e mais segura Advocacia, ampliando o conhecimento e reduzindo a necessidade de intervenção disciplinar.

Lisboa, 5 de novembro de 2012
Luis Paulo Relógio 

Sem comentários: