Segredo de Justiça A implosão final de um mito ou a interminável continuação da hipocrisia?

Impunha-se repristinar aqui e dar a conhecer um texto antigo que mantém total actualidade.

Em Portugal, o segredo de justiça, em vez de ser um instrumento sério para salvaguardar as finalidades da investigação ou para proteger a imagem, o bom nome e a honra dos visados no inquérito, é, cada vez mais, uma arma de arremesso. E num processo penal em que a igualdade de armas é expressão de uma realidade inexistente, sobretudo para o cidadão comum, o segredo tem sido arma utilizada para finalidades várias que não as da justiça.

A história recente é rica de patologias graves, de quebras patentes de sigilo e de fugas patentemente cirúrgicas, que só desprestigiam a justiça e os seus profissionais, sem excepções. Mas nunca, como hoje, se foi tão longe.

Cirúrgica e dirigidamente, são revelados factos e actos cobertos pelo segredo, quantas vezes para construir a priori cenários de pressão sobre a justiça, urdir acusações ou reacções, ainda que injustas, mas credíveis aos olhos do público, e destruir, com a manipulação e a consequente morte civil, cidadãos que se presumem, e quantas vezes são mesmo, inocentes.

Tal qual está o segredo de justiça é um segredo de polichinelo. O fruto proibido é o mais apetecido. E num país em que toda a gente fala do que não sabe e em que a maior parte não consegue conter o que sabe, manter segredos parece tarefa votada ao fracasso.

Não podemos, porém, continuar a assistir a diligências pré-anunciadas, a detenções em directo, interrogatórios judiciais de arguido detido sob as luzes dos holofotes e outras aberrações tais como o anúncio prévio de buscas ou outro tipo de diligências investigatórias que deviam estar cobertas pelo sigilo. Nem com indiciações pormenorizadas em fases iniciais ou com antecipações do despacho de encerramento do inquérito em fases finais... Ou até com acusações destiladas a conta-gotas para gáudio da populaça!

Justificava-se pois restringir o segredo ao que deve ser secreto. Fui dos primeiros a defender que só deveria ser secreta a investigação que o justificasse. Que não haveria segredo como regra, mas sim como excepção. Sempre defendi que casuística e justificadamente o Ministério Público decidiria se o processo, ou algum elemento do processo, ficava sob sigilo. Paulatinamente o legislador veio a dar-me razão, adoptando a publicidade como regra e o segredo como excepção.

Mas mesmo este segredo não pode ser absoluto e interminável.
O segredo não pode ser absoluto porque, se necessário, deve ceder para garantir necessidades de defesa e de sindicância externa da actividade investigatória.

O segredo não pode ser interminável porque os processos não podem arrastar-se indefinidamente e continuar cobertos pelo manto do segredo e pelo pacto do silêncio.

Permitir este absolutismo e esta opacidade é permitir, ou facilitar, toda a espécie de abusos, negligências ou displicências.

Não se pode, pois, cair na tentação de perseguir quem critica a Justiça. Ou de quem desvende a Verdade. Ou de quem ponha em causa rotinas instaladas e interesse ocultos. E não foi a formulação do crime de violação do segredo de justiça no novo Código Penal que veio melhorar o statu quo. Ficou tudo na mesma ou pior. Até porque o poder político, o legislador, adulterou completamente a proposta, minha, que foi adoptada pela Unidade de Missão para a Reforma Penal. Só criminalizar o essencial das violações, com certeza, objectividade e clareza. Sem dúvidas. Mas isso são águas passadas…

Certo é que a inércia da investigação ou a lei da mordaça só vai servir para potenciar ou dirigir ainda mais as cirúrgicas e cobardes violações. Umas oportunisticamente suportáveis porque coincidentes com a verdade oficial e outras convenientemente criminalizadas porque dissonantes… Nada de novo, aliás.
Pergunta-se, pois, para quando a implosão final de um mito? Ou porquê a interminável continuação da hipocrisia? Que nos pode custar a todos muito.

Tinha muita razão, no diagnóstico, o anterior Procurador-Geral da República em definir o “segredo de justiça” como uma fraude e uma conspiração. Tem ainda mais razão a actual Procuradora-Geral da República quando, para a terapêutica, elege o cumprimento escrupuloso do dever de reserva e da salvaguarda do segredo como prioridade geral e a responsabilização institucional como caminho a seguir. Mas a questão essencial não é realmente essa.

A questão fulcral (convenientemente esquecida ou cautelosamente omitida) é, afinal (e isso cumpre à investigação), saber-se quem concreta e individualmente o defrauda?

Porquê e para quê, isso, infelizmente, já todos nós, os profissionais do foro, bem o sabemos, alguns na pele.
Quantas vezes, vezes demais, o segredo é a desculpa e o álibi dos incompetentes e…
…a melhor arma de arremesso dos mal-formados e dos maldizentes.

Vale a pena reflectir sobre as coisas judiciárias.

Que são coisas da vida.
E a vida está difícil.

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