Advocacia – Uma perspectiva

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1.1. Ao falar de advocacia não posso deixar de recordar a minha própria vida profissional, já que na Ordem me inscrevi na verdura dos vinte e poucos anos e nunca mais deixei de me sentir Advogado.

Daí que na sessão solene de abertura do nosso 2º Congresso, em Dezembro de 1985, tenha dito :

Como Ministro da Justiça, e enquanto represento um Governo que quer ser útil ao País e às pessoas que lhe dão um sentido existencial, faço votos – e muitos sinceros – pelo completo êxito deste 2º Congresso. É isso que dele espera a Administração da Justiça e a necessidade de lhe ser dada uma melhor articulação e uma mais operativa actuação.

Só que, embora sendo temporariamente um advogado in partibus, não me demito de ser um advogado – e um advogado que nunca se conformou com a rotina dos procedimentos ou com a estreiteza dos horizontes. Ao vestir hoje a minha velha toga, sinto que dela me provém como que uma alma nova; penso que, realmente, há e continuará a haver uma perene “alma da toga”. Ser advogado foi e virá a ser de novo a minha vida; numa retrospecção do tempo percorrido reencontro momentos altos e horas de preocupação, férias de um mês e noites seguidas de trabalho, questões maximamente complexas e minúcias quase que pitorescas; mas, envolvendo tudo isso, com o que sempre me deparo, nessa evocação, é ter sido um motivo de honra e de nunca interrompida dignidade o fazer parte do grande e generoso espaço humano que é a advocacia.
É, pois, como advogado, que a todos peço que estes dias de trabalho comum seja uma afirmação de responsáveis inconformidades, de motivadas exigências, de saudáveis sugestões para que o Mundo, no que a todos toca melhor – quer no que respeita ao nosso estatuto profissional, quer no que se reporta ao estatuto de cidadania que a todos os portugueses, iguais em dignidade social e iguais no Direito e nos seus direitos, deve ser reconhecido e efectivamente atribuído.

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B.M.J., 351, p. 5-13.
Estava então no X Governo Constitucional (Cavaco Silva). Fora este “posicionamento” que também assumi nos III (Nobre da Costa), VI (Sá Carneiro) e IX (Mário Soares) Governos Constitucionais, também como ministro da Justiça.

1.2. Logo em Novembro de 1955 instalei – em conjunto como o Alçada Baptista – um escritório na Rua Anchieta. Recordo o “cuidado” do dono da oficina que fazia as tabuletas em só aceitar a encomenda depois de eu lhe exibir a minha cédula profissional de advogado. Achou-me com “ar” de “candidato à advocacia” como então eram (mal) designados os advogados estagiários!

1.3. “Aberto” o escritório o que era então preciso era sorte, vocação e muito trabalho.

Pouco tempo decorrido sobre o início tinha uma actividade bastante intensa e contracenara já com alguns dos maiores Advogados de então (Bustorff Silva, Adelino da Palma Carlos, Mário de Castro, Almeida Ribeiro, Abranches Ferrão, Heliodoro Caldeira, Luís Veiga, Fernando Lopes, Tito Arantes, Fernando Olavo, Carlos Mourisca, Salgado Zenha, João António Lopes Cardoso, Acácio Gouveia, eu sei lá!). A Azeredo Perdigão, já não o encontrei como Advogado. Contactei com Bustorff Silva durante quase um ano, não exactamente na sua condição de Advogado, mas na medida em que eu era Advogado de uma entidade que ajustara vender-lhe uma Herdade perto de Setúbal (a “herdade da Mourisca”). Suscitava a concretização formal da venda complexos problemas jurídicos, desde os da delimitação da área exacta a questões de domínio público marítimo. Mas tudo correu bem e fiquei dele amigo próximo. Era um fenómeno de inteligência, de grandeza humana e profissional. Vinte anos mais tarde, já como Bastonário, tive a honra de lhe entregar o diploma de Advogado Honorário, que, sob minha sugestão, o Conselho Superior por unanimidade lhe atribuiu. Na simples cerimónia que teve lugar em sua casa, na Rua de S. Domingos à Lapa, estiveram – naquela época de contradições políticas à flor da pele – Advogados de todos os quadrantes ideológicos. Era a descomprometida homenagem a um Advogado como tal. E as comovidas palavras que então disse, traduzindo o sentimento geral, por todos foram compartilhadas, nos rostos e nas lágrimas.

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2.1. Ninguém duvidará que ser advogado é muito mais do que uma actividade materializada em resultados; é um estado de espírito, uma assunção ética, uma personalizada relação de fidelidade a um núcleo de princípios e de regras fundacionais. Sublinhou Louis Lavelle que a fidelidade se ergue “sur un principe créateur”; ora tal ideia alcança aqui uma expressão singularmente vívida e activa; resguardando a fidelidade àquela matriz “fundacional”, em cada momento cada advogado fará despontar uma dinâmica re-definidora da própria advocacia.

Mas se o terreno das circunstâncias o advogado será, assim, um criador de vida, sê-lo-á, por decorrência, no plano do próprio Direito, que é vida em forma; a criação forense da realidade jurídica condiciona e afirma o que de mais operante existirá na criação judiciária do Direito; e sem esse impulso criativo dificilmente o Direito se cumprirá na sua razão última, que é a de constituir uma ascese para a Justiça.

Pertence ao advogado, em imprescindível contributo, a fase da inventio; e, na fase que a complementará – a do iudicium ou demonstratio, a sua presença será, de igual modo, necessária. Ou seja: sem o rasgar da descoberta, sem a audácia por assim dizer genética na captação de rumos e soluções, precariamente se consumaria, e nunca em plenitude, a construção ou reconstrução do Direito, na sua realização a um tempo pragmática e axiológica.

Congregar essa audácia disponível e imparametrável com a coerência da actuação e com o rigor da sua adaptabilidade aos sentidos virtuais do ordenamento normativo, será uma das mais responsabilizantes vertentes da sua responsabilidade. É a máxima responsabilidade da independência ética e funcional, que para ser responsabilizante nem depende de ser responsabilizável; o advogado é, prevalentemente, responsável perante a sua própria consciência, em sintonia com os valores e com os interesses sociais que particularizam a sua profissão.

Tratar-se-á da ética dos postulados mas, de igual passo, da ética da competência e de uma actualizada eficácia. No quadro das personagens que movimentam o diálogo jurídico, mesmo que ainda não judiciário, o advogado é a única que não dispõe de potestas mas tão-somente de um pressuposto de auctoritas, para usar de uma clássica dicotomia. A sua possível força não advém de qualquer poder impositivo, mas apenas da autoridade que da razão desponta. Para que a sua intervenção prevaleça o advogado terá de convencer, só assim vencerá; nada lhe é dado, tudo por ele deverá ser conseguido. Nisto estará, precisamente, a sua figurável glória, a sua dignificada grandeza, o permanente desafio a que continuadamente se sujeita. Para tal é chamado (“ad-vocatus”); e apenas corresponderá a esse “chamamento” pela resposta apta que lhe souber dar.

Exactamente neste contexto poder-se-á dizer que o advogado é, entre todos, o jurista que, para o ser, terá de estar em mais imediata relação com os outras pessoas. Nunca poderá ser uma pessoa só, livre de se encerrar numa reflexão solitária. É a pessoa que abre e dá começo ao diálogo jurídico. Com ele o Direito ganha a sua mais clara expressão de vida. E, para esse diálogo, o advogado se terá de partir com uma lógica cognitiva, terá, em quase idêntica medida, de não se dissociar de uma lógica intuitiva. Por assim acontecer, arriscado não será concluir que a advocacia é uma profissão, mas é também uma vocação; dificilmente se poderá protagonizar externamente um “chamamento” se para ele se não estiver interiormente motivado.

Não existirão, por certo, na esfera temporal, actividades providenciais; só que para algumas uma conseguida aptidão não será apenas “uma longa paciência”.

2.2. Socialmente inserido, o advogado tanto quanto mais independente for mais audivelmente fará ouvir a sua voz; e será pela sua voz que se farão ouvir a dos seus constituintes. Sempre por isso insisti – por vezes em momentos a que condicionalismos históricos conferiam uma especial densidade e pertinência – que o decisivo sentido público da advocacia resultará do seu enquadramento privado. Os advogados e a advocacia não poderão perder um papel de contra-poderes face aos poderes estabelecidos ou convencionados; e estes não serão somente os institucionais, na sua arquitectura esquemática. Nas sociedades modernas, mesmo quando democráticas, os poderes mais opressivos despontarão, como sub-produtos, dos que institucionalmente se delineiam e configuram. Será a burocracia envolvente, complexificando o que deveria ser simples e natural. Será a violência fragmentada e difusa de autoridades menores, resguardadas pelo anonimato e pela cumplicidade de um latente decadentismo. Será a massificação dos comportamentos que, todos somados, favorecem a propagação e a estabilização de uma dificilmente enfrentável “gestão da mediocridade”. Ao “bem comum”, como justo princípio e como irrecusável fim da actuação dos agentes do Estado, tende a substituir-se, não raramente, a frutificação de “males habituais”, pouco a pouco sistematizados e aceites como fatalística rotina.

Contra todo este arsenal de novas servidões da pessoa humana o advogado lutará com as armas da razão e de uma serena firmeza. Carecerá, para tal, que as leis correspondam ao Direito e que não dificultem a concretização dos direitos pela sua impraticabilidade, mesmo que relativa; o advogado tem não apenas o direito, mas o inalienável dever de contribuir, naquilo que possa, para uma exacta conformação do ordenamento legislativo. Entretanto, e em contra-pólo, deverá esquivar-se a que, pelo lado dos destinatários das leis, se fomente a avidez de uma “apropriação” de novos direitos, contraditórios com a natureza da pessoa, com a normalidade social e com os valores subjacentes à ordem jurídica. Não caberá ao advogado fazer uma “pedagogia” dos comportamentos ou accionar uma “reforma das mentalidades”, pelo menos directamente; mas terá, sem dúvida, a seu cargo o promover, no que ao seu alcance estiver, uma proporcionada adequação dos interesses individuais aos interesses gerais e aos vectores fundamentais da sociedade. Tendo em cada caso bem presente que o seu mais imediato objectivo será o de defender o seu constituinte, enquanto parte de um confronto de interesses e de perspectivas, não se dissociará, por certo, das grandes regras que inspiram o Direito, do qual continua a ser, como jurista, um dignificado “servidor”.

2.3. É por tudo isto que a advocacia terá que ser uma profissão com alma e com nervo, coerente com o perfil que os séculos lhe moldaram mas ritmada por uma inquietação que a projecte para épocas diferentes, com intensificados escolhos e potenciados problemas. Terá que ser, em síntese, uma profissão insistentemente nova; esta será mesmo uma das suas mais operantes tradições. Mal faria o advogado, neste conturbado século XXI, se congelado estivesse pelos séculos que o precederam. E uma má advocacia teríamos se os seus organismos institucionais se fechassem às realidades actuais. É que a vida corre mais depressa. O boom dos que ingressam na profissão é o que eu próprio via e já pressentia como Bastonário e que as circunstâncias não se cansam de reconfirmar.

 2.4. Põem-se com urgência necessidades de especialização, já não apenas em nós Advogados mas nas sociedades profissionais em que muitos de nós nos integramos. A internacionalização das relações jurídicas é hoje premente. E ainda bem que o é, já que dá causa a um ecumenismo já não apenas cultural, mas tecnológico – e, porque não dizê-lo? – social, que dia para dia reforça a sua presença em qualquer actuação pública. Ter-se-á esta que reger por critérios de equidade e de respeito pela dignidade humana, e a isso nunca os Advogados nem a Ordem que os congrega poderão ser indiferentes .

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3.1. Mas os Advogados devem falar.

E a mais adequada sede para que a sua pronúncia seja mais representativa e relevante será, por certo, a Ordem.

Hoje já não será caso de repetir o que antes de 1974 mais do que uma vez lembrei, reproduzindo o Advogado do séc. XVIII Jerónimo da Silva Araújo:

“Nunca o advogado (...) receie falar dentro dos limites da honestidade, nem tema os homens poderosos e belicosos. Fale viva e insistentemente contra os vícios, crimes, pois, se tal fizer por amor à República, e para honra de Deus e do povo, que importam as ameaças, que importam os gritos, que importam as línguas malditas dos soberbos?”.
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Cfr., neste sentido, várias intervenções minhas de 1980 e 1985-87, designadamente na sessão solene de abertura do XXXIII Congresso da A.I.J.A. (B.M.J., 349, Out. 1985, p. 5) que em parte agora reproduzo. Só que os problemas de intervenção pública, desde logo europeus mas também nacionais, são hoje sem dúvida, mais graves e dificeis de enfrentar.


3.2. Creio, assim, que será de repropor problemas de determinante relevo para um desejavelmente bom regime (a palavra é deliberadamente escolhida) de Justiça.

São eles o acesso ao direito e a normalização da função judicial.

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4.1. Até meados dos anos 70 a problemática do acesso à Justiça confinou-se em Portugal à análise, num plano meramente técnico, quase gramatical, da “assistência judiciária”. E daí que na sua primeira versão (a de 1976) a Constituição portuguesa – aliás geralmente preocupada em compendiar com detalhe os direitos fundamentais – apenas explicitasse que “a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” (nº 1 do art. 20).

Foi na Ordem dos Advogados que a questão viria a ser encarada numa perspectiva mais alargada. E surgiu então, pela primeira vez a ideia, e até a designação, de uma política de acesso ao Direito3.

Compreenderia esta não apenas a informação jurídica, mas a consulta jurídica e o apoio judiciário.

E na 1ª revisão constitucional – a de 1982 – logo foi consagrado como epígrafe do art. 20 o “Acesso ao Direito e aos Tribunais”.
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3 Mário Raposo, O Acesso ao Direito e a Ordem dos Advogados, na R.O.A., Maio-Agosto 1977, p. 391. Id., Sobre o Acesso ao Direito, no B.M.J., 358, Julho de 1986, p. 11-16. Não terá sido inédita, num confronto comparatístico, a ideia surgida em 1977 na Ordem dos Advogados, mas sê-lo-á, por certo, a designação, já que apenas em 1984 uma fórmula próxima é encontrável em André Tunc – “acesso ao sistema de Direito” – que, aliás, para ela não propendia. 

Entretanto, o grupo parlamentar do PSD, através do seu presidente, cuidou de explicitar que a figura do “patrono público” fora eliminada por acção do PSD. E concluiu na declaração de voto: “o PSD entende, pois, que a novidade agora trazida (a do acesso ao Direito) é um elemento do seu património programático”4.


4.2. A hipótese de um defensor público (designação actual dada ao patrono público “ensaiado” em 1982) está a ser vista como uma solução “possível” para enfrentar os males da Justiça. É, no entanto, evidente que o apoio judiciário terá que ser assegurado por advogados como os outros, sujeitos ao estatuto ético e profissional decorrente das regras gerais que para todos os advogados valem.

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5.1. Pertenci à Comissão de Reforma Judiciária criada pelo Ministro Salgado Zenha junto do S.T.J. em Junho de 1974.

Pouco antes, o ministro – que foi um grande Advogado, como tal ainda hoje justificadamente lembrado – promovera com a publicação do Dec.-Lei 251/74, de 12.6, o acesso aos cargos judiciários e do Ministério Público a todos os cidadãos portugueses, “independentemente do seu sexo”.

Começara, entretanto, já a aflorar, provindo de vários quadrantes, uma indisfarçada desconfiança quanto ao Poder Judicial e aos Juízes, no que poderia dizer respeito à sua plena ortodoxia democrática, e à sua sensibilidade face aos problemas do país real. Daí a re-criação do júri, que asseguraria a “intervenção dos representantes do povo” – “base e alicerce de toda a ordem democrática” (preâmbulo do Dec.-Lei 679/75, de 9.12) num bem denotado confronto com um país artificial, que seria o dos juizes5.
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4 D.A.R., 1ª série, 11.6.1982, p. 4187-4188. Cfr. ainda Mário Raposo, Nota sumária sobre o art. 20 da Constituição, na R.O.A., 1984, III, p. 523-543.
5 Subprodutos desta rejeição da Justiça convencional foram os “julgamentos populares”.


5.2. Foi a Ordem dos Advogados – com a legitimidade que lhe advinha do que sempre dissera e fizera – quem mais frontalmente e publicamente reagiu contra essa onda de alastrada reticência, com crescentes focos de desautorização, do Poder Judicial6. 

E será ela que poderá, uma vez mais, contribuir significativamente para que o “mau ambiente” que em alastrada opinião se formou em relação à Justiça e a quem a administra comece a desvanecer-se.

A criação, em termos de razoabilidade, de gabinetes de apoio aos juízes e aos magistrados do M.P.7, e a transferência de tarefas não jurisdicionais ou de mera gestão para secretários de justiça8 ajudarão a rentabilizar a função judicial e a restabelecer, por decorrência, a sua imagem.


5.3. Entretanto, mesmo aqui, com a propensão para se passar do zero para o infinito foi já aventado que cada juiz deveria dispor de uma “secretária” (sic), para tratar da sua agenda.

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6 Sobre as posições, por vezes determinantes, da Ordem na consolidação da reforma judicial durante a Assembleia Constituinte cfr. Fernando Ruivo, A magistratura num período de crise do Estado, cit. por Pedro Coutinho Magalhães, Democratização e independência judicial em Portugal, em Análise Social, 130 (1995), maxime p. 78.
7 Que eu próprio imaginara como sendo constituídos por outros juízes, em fase de estágio, no caso dos magistrados judiciais - que se limitariam a carrear elementos doutrinais e jurisprudenciais para a elaboração da sentença, sem intervenção na sua feitura. Nos arts. 83 e 84, nº 4, da Lei 52/2008 cai-se, como quase sempre, no exagero – de meios e de pressentíveis encargos.
8 Exposição de motivos da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, no B.M.J., 362, Jan. de 1987, p. 135 s. Na Lei 52/2008 (arts 95 a 98) vê-se que o administrador tem apenas funções de gestão por assim dizer empresarial. Daí que dos arts. 95, 2, e 96 resulte que poderão ser nomeados “trabalhadores” sem qualquer experiência anterior na actividade judiciária. Não será, por certo, o “curso de formação” ministrado no CEJ que lhes “injectará” o que só da experiência (e da capacidade demonstrada) consistentemente advirá.

Ora, este alvitre a meu (realístico) ver, só como “tropo” imaginativo será pensável.

Realmente, na “agenda” de um juiz concentra-se e planifica-se em decisiva medida toda a sua actividade judicial “externa”. É um elemento intransferível da sua função. Aliás, esse “apoio” será naturalmente dado pelos funcionários judiciais que com ele cooperam. Mas nunca para estes, ou... pior, para um deles por completo endossado.


5.4. Em diverso plano há que ter a (boa) criatividade para, sem cair numa contingentação “cega”, impedir que aos juízes sejam atribuídos mais processos do que aqueles a que naturalmente possam dar resposta.

A isso me referi, quando do debate constitucional da 1ª revisão9 deste modo:

“Há que ter imaginação, a par da sempre necessária sensatez, para evitar que a maré negra de pequenos diferendos continue a abater-se sobre os tribunais. Como poderá continuar a admitir-se que em certos casos a cada juiz sejam, afectados (...) mais processos do que aqueles que, sem sacrifício da sua independência de espírito, que é a essencial, poderia dar resposta? Este é um problema dramático que em toda a parte está a ser enfrentado”.


5.5. É da independência dos juízes10 que advém a sua legitimidade. Aquela é afirmada na Constituição e integra a essencial expressão da sua tábua de valores.
Mas a ratificação dessa legitimidade por assim dizer originária (no sistema constitucional português) manter-se-á enquanto quem a detém a possa e queira justificar.

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9 D.A.R., 1ª Secção, 23.7.1982, p. 5303.
10 A independência dos juízes “ut singuli” é, aliás, a que advém da independência dos tribunais (art. 203 da Constituição).


Os poderes do Estado – de todos os órgãos do Estado e, portanto, o dos juízes – são atribuídos para serem exercidos no respeito pela Constituição, pelas leis, pelo Direito e, mais directamente, pelas pessoas. Por todas as pessoas. Mas, maximamente, pelos Advogados, que tendo como único poder o da razão, devolverão aos tribunais o respeito que deles recebam. Trata-se de uma reciprocidade de valências.

A legitimidade dos Juízes não é uma outorga majestática e dilui-se na sua própria razão de ser quando, liminar ou subliminarmente, neles aflora uma certa displicência ou um mal compreendida (porque inexistente) supremacia posicional11.

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6.1. É sobre tudo isto que os Advogados deverão ter uma decisiva palavra – palavra saudavelmente crítica - em relação ao que já está feito, e uma acção criativa relativamente ao muito que ainda está por fazer. E a sede – o nervo motor dessa intervenção – deverá ser, naturalmente, a Ordem, como noutras circunstâncias da Justiça ou do País sempre foi..

6.2. A experiência vivida dos advogados será determinante quanto a alguns passos que poderão vir a ser dados.
E sem que isso de forma alguma condicione, como é, óbvio, cada Advogado na sua plena liberdade de afirmação pessoal repito que será a Ordem o prioritário “centro nervoso” do diálogo a manter com os poderes públicos, a começar pelo Ministério da Justiça. 

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11 Mário Raposo, Palavras ditas na reunião solene de encerramento do VI Congresso da Ordem, na R.O.A. Dez. 2005, p. 1029 s.

Para isso a Ordem - órgão plural dos Advogados, que deverá ter como tradicionalmente desde o início teve, a exacta noção dessa sua determinante responsabilidade.

6.3. Não é figurável, por ex., que se “avance” para uma drástica “revolução” do mapa judiciário sem uma prévia e muito alargadamente ponderação das suas consequências. 

Uma Administração da Justiça a funcionar com eficácia terá, por certo, um significativo papel no normal desenvolvimento económico do País. Mas isso não significará que possa ser encarada em termos meramente economicistas.

A Justiça é feita para as pessoas. E, invocando uma frase que fez carreira, todas e cada uma elas não terão apenas direito aos direitos. Deverão ter, em circunstâncias de acessibilidade que não redundem em pura hipocrisia, direito a um tribunal12.

Aliás, com a multimoda panóplia de custos facilmente antecipável com o funcionamento do pressentível “new-look” – é de supor que pouco com ele se “poupará”. E, em contraponto, os encargos que as pessoas (essa subtil “entidade” tantas vezes esquecida) suportarão em deslocações e decepções subirão em flecha13.  

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12 A um tribunal como espaço físico e humano a que as pessoas possam ter acesso natural. Um tribunal distante e de penoso acesso em termos de realidade faz com que o dogma da “garantia da via judiciária” perca sentido e realidade.
13 Ainda aqui a invocação do princípio da igualdade terá pertinência, desde que nele interceda o subtil qualificativo “sem discriminações” – cujo sentido é diferente daquele que rejeita as “distinções”. Como, noutro plano, terá pertinência total a racionalização dos meios (sobretudo humanos) afectados ao sistema judiciário – o que até agora não passou de ensaios ou projectos  por via de regra inconsequentes.


Mário Raposo

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