Ordem dos Advogados: a tentação de uma ordem corporativa e fechada

Rui Medeiros


ORDEM DOS ADVOGADOS: A TENTAÇÃO DE UMA ORDEM CORPORATIVA E FECHADA
(Novembro de 2012)


1. Introdução

O MoU fornece o mote para estas breves notas. Dir-se-ia que, no quadro atual, em que crescem as vozes que contestam o Memorando de Entendimento sobre as Condicionantes de Política Económica, o início deste texto não podia ser mais infeliz. A verdade, porém, é que, em diversos aspetos, se for levado a sério, o MoU pode constituir uma oportunidade de mudança. É justamente o que se passa em relação às ordens profissionais.

Efetivamente, a propósito das profissões regulamentadas, depois de se referir a importância de “rever e reduzir o número de profissões regulamentadas e, em especial, eliminar as reservas de atividades em profissões regulamentadas que deixaram de se justificar” (5.25.), estabelece-se concretamente que se deve “melhorar o funcionamento das profissões regulamentadas (tais como técnicos oficiais de contas, advogados, notários), cuja regulamentação envolva associações ou organizações profissionais (Ordens ou Câmaras), levando a cabo uma análise aprofundada dos requisitos que afetam o exercício da atividade e eliminando os que não sejam justificados ou adequados (…)” (5.26.).

Obviamente, quando se procura aplicar o MoU à Ordem dos Advogados, a primeira tentação é assobiar para o lado. Mas, se se tomar a sério o Memorando, perceber-se-á que esta corporação pública não deve ficar à margem desta oportunidade de mudança. A razão prende-se com o facto de a Ordem dos Advogados não estar a resistir à tentação de uma corporação corporativa e fechada. Esta tendência – que acompanha a vida da Ordem há muito e, por isso, não é imputável a nenhum Bastonário em particular –manifesta-se em diversas aspetos. Os exemplos que vão ser referidos – e que não envolvem qualquer juízo de valor em relação às políticas seguidas pelos diversos Bastonários que implementaram ou aceitaram as medidas em causa (com quem, aliás, o autor destas linhas teve o privilégio e a honra de trabalhar e de aprender) – pretendem apenas ilustrar como o referido fenómeno se tem vindo a impor.


2. A pressão corporativa na restrição do acesso à Ordem

Não sofre contestação que a Constituição admite a existência de associações públicas em geral e de ordens profissionais em particular e que, no âmbito das ordens profissionais, são legítimas – à luz da credencial que se extrai do n.º 1 do artigo 47.º da Constituição – restrições à liberdade de profissão. E, de facto, se é verdade que a consagração da liberdade de profissão pelas revoluções liberais abriu à prática privada autónoma certas profissões que antes eram consideradas como cargos públicos ou parapúblicos, como sucedia, por exemplo, em vários países, como a advocacia e a medicina, não é menos certo que rapidamente se sentiu a necessidade de sujeitar estas e outras profissões, tradicionalmente designadas como profissões liberais ou profissões livres, a um sistema de regulação pública mais ou menos intenso.

Com efeito, trata-se de atividades profissionais para cujo exercício se requerem especiais preparação e idoneidade e que, por isso, “exigem, mais do que qualquer outras, um enquadramento estatutário e orgânico de regulamentação e controlo da atividade profissional” (JOÃO PACHECO AMORIM, A liberdade de escolha da profissão de advogado, Coimbra, 1992, p. 26). Ora, num modelo organizatório assente na devolução a uma ordem profissional da função de controlo do acesso à profissão, regulamentação do respetivo código deontológico e exercício do poder disciplinar sobre os seus membros, a obrigatoriedade de inscrição, em si mesma, não oferece dúvidas de constitucionalidade, pois, de outro modo, frustrar-se-ia a tutela do interesse público prosseguido através dos esquemas de autorregulamentação profissional assentes na constituição de associações públicas (cfr., por último, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 89/2012).
A verdade, porém, é que uma corporação pública, para além de regulador público, pode transformar-se facilmente numa associação de defesa dos interesses profissionais dos seus membros.

A jurisprudência europeia refere, a este propósito, o risco de uma ordem profissional funcionar como uma associação de empresas apostada em subtrair uma atividade de mercado aos princípios gerais da concorrência. E, de facto, na regulamentação do acesso à Ordem, independentemente agora da admissibilidade constitucional ou legal das concretas soluções em causa, a lógica corporativa – e, mais concretamente, de proteção dos advogados existentes – manifesta-se objetivamente a diversos títulos.

Dir-se-ia, numa palavra, que, neste domínio, se verifica, desde há muito tempo uma “tendência malthusiana das ordens profissionais no sentido de restringirem excessivamente o acesso à profissão, o que fazem pelos mais variados modos”, designadamente “criando barreiras ao acesso (exames à entrada), estabelecendo longos estágios profissionais, agravando a exigência dos exames de estágio, de modo a reprovar muitos candidatos, fixando taxas incomportáveis de estágio e de exame, etc” (VITAL MOREIRA, Malthusianismo profissional, in blogue Causa Nossa, 20 de Outubro de 2004).

a) É conhecida a polémica suscitada pela norma do Regulamento Nacional de Estágio, na redação aprovada pela Deliberação n.º 3333-A/2009, de 16 de dezembro, que determinava, como condição de acesso ao estágio de advocacia, a realização de um exame prévio de ingresso pelos candidatos que houvessem obtido a sua licenciatura após o Processo de Bolonha, sendo bem sabido que o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 3/2011, concluiu que o Conselho Geral da Ordem dos Advogados não tinha competência para criar por via regulamentar autónoma, ao aprovar aquele exame, uma nova condição de acesso ao estágio de advocacia e, por consequência, ao exercício da profissão de advogado.

Mais recentemente, embora sem entrar na questão de fundo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 89/2012 concluiu que também a suspensão do direito à (re)inscrição no curso de estágio de advocacia pelo período de três anos aplicável aos candidatos que, sendo embora licenciados em Direito por cursos universitários nacionais ou estrangeiros oficialmente reconhecidos ou equiparados, hajam decaído já na frequência do estágio de advocacia em razão da verificação, nos três anos precedentes, de uma de três possíveis ocorrências –  i) obtenção de classificação negativa na prova de aferição realizada no âmbito da repetição da fase de formação inicial ou falta reiterada ao teste escrito que a integra; ii) verificação de falta de aproveitamento no âmbito da repetição da fase de formação complementar; ou iii) reprovação na prova oral de repetição realizada no âmbito da repetição da fase de formação complementar – violava a reserva relativa de lei parlamentar (que se extrai do disposto nos artigos 47.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
Em qualquer caso, no plano em que se situa este discurso, não se pretende com a referência a estes dois casos recentes discutir a bondade jurídica das opções adotada. Não se trata, concretamente, de saber se – mesmo admitindo que a titularidade de graus académicos conferidos em ciclos de estudos devidamente acreditados pela A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior) é compatível com a avaliação por uma ordem profissional da aptidão profissional dos candidatos à inscrição nessa corporação – os requisitos em causa, ainda que introduzidos por lei parlamentar, resistiriam ao crivo de um juízo de constitucionalidade material (questão sobre a qual o Tribunal Constitucional não se pronunciou).

O intuito destas linhas é tão-somente sublinhar que, independentemente de outras justificações, as soluções em causa permitem objetivamente uma leitura corporativa, ao dificultarem a entrada na advocacia de novos candidatos e ao protegerem, por essa via, os advogados instalados. No fundo, como se confessa no Preâmbulo do Regulamento Nacional de Estágio em vigor, entre outros fatores atendíveis, não deixa de estar a constatação do fenómeno da “degradação da profissão” num contexto de saturação do mercado, no qual já existem em atividade “milhares de advogados que lutam desesperadamente pela sobrevivência profissional que só poucos conseguirão”.

b) A questão da duração do estágio da advocacia é também, neste contexto, sugestiva.
Recorde-se que, no âmbito da vigência do Regulamento n.º 52-A/2005, de 1 de agosto, o estágio de advocacia tinha a duração de 30 meses. E, mesmo depois das alterações introduzidas através da Deliberação n.º 3333-A/2009, a duração da fase de estágio foi encurtada em apenas seis meses, ficando ainda com uma duração de dois anos.

A exigência de um estágio profissional de longa duração mantém-se não obstante o modo como, em Portugal, o chamado Processo de Bolonha foi aplicado ao ensino do Direito. É sabido que, no quadro de Bolonha, à partida, o ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado pode ter uma duração normal compreendida entre seis e oito semestres curriculares de trabalho dos alunos, enquanto o mestrado tem uma duração normal compreendida entre três e quatro semestres. A chamada opção 3+2 anos, adotada em muitos cursos, foi recusada pela generalidade das faculdades de direito portuguesas, que preferiram uma licenciatura com a duração máxima admitida (4 anos) e um mestrado de um ano e meio ou dois anos.

O que significa que muito candidatos à Ordem dos Advogados têm, hoje, para além de uma formação geral de quatro anos, um mestrado profissional ou, pelo menos, concluíram a parte escolar do mestrado. Ainda assim, para se tornarem advogados e exercerem a profissão liberal – não se trata, portanto, da formação de magistrados –, devem percorrer um calvário de pelo menos dois anos de estágio profissional.

Ora, para além dos efeitos nefastos que podem ocorrer se os advogados-estagiários forem convertidos em mão-de-obra barata ao serviço de advogados instalados, a previsão de um estágio profissional com uma duração tão longa constitui, bem vistas as coisas, mais um obstáculo destinado a evitar, dificultando a entrada de novos players, o agravamento do fenómeno de massificação da advocacia.


3. A força expansiva dos atos próprios dos advogados

As considerações anteriores exemplificam apenas alguns traços do regime jurídico da Ordem dos Advogados que configuram restrições à liberdade de profissão em relação àqueles que pretendam exercer a profissão de advogado. No entanto, existem outros instrumentos de regulamentação profissional corporativa que se destinam, objetivamente, a limitar a atividade profissional ou económica, não já de interessados em ser advogados, mas de pessoas ou empresas que se dedicam a um género ou modo de trabalho ou atividade distinto da advocacia. É o que sucede, por exemplo, com algumas normas legais que definem os atos próprios dos advogados.

Neste domínio, com efeito, o facto de as ordens profissionais serem simultaneamente entes públicos reguladores e associações de representação e defesa dos interesses coletivos de uma certa atividade profissional explica, em larga medida, a tendência para procurar limitar o acesso à profissão, mediante a ampliação da “esfera da sua competência exclusiva em prejuízo das profissões próximas” (VITAL MOREIRA, Administração autónoma e associações públicas, Coimbra, 1997, p. 470).

Esta ideia pode bem ser ilustrada com o disposto na Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto. Este diploma não se limita a identificar o que parece constituir o núcleo essencial dos atos próprios dos advogados: o mandato forense e a consulta jurídica. Para além destes, existem outras categorias de atos que o legislador entendeu enquadrar no conceito a que vimos a fazer referência. Assim, por exemplo, nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 1.º, são ainda atos próprios dos advogados e dos solicitadores “a negociação tendente à cobrança de créditos”, incluindo portanto a que ocorre de forma amigável e extrajudicialmente.

É interessante, aliás, verificar que, mesmo admitindo que estão em causa atos próprios dos advogados, a força expansiva do conceito vai ao ponto de impedir que uma tal atividade de negociação tendente à cobrança de créditos seja realizada por advogados enquadrados em estruturas societárias que promovam e desenvolvam serviços de gestão de cobranças e recuperação de créditos, privilegiando assim as sociedades de advogados. É sabido que, com base na normação legal formalmente em vigor, a Ordem dos Advogados tem sustentado que a prestação de serviços de gestão de cobranças e recuperação de créditos pelas empresas de cobranças se integra no conceito de procuradoria ilícita.

Não cabe, em coerência com a perspetiva adotada nestas notas soltas, discutir aqui em que medida a leitura extensiva do conceito de atos próprios dos advogados nos termos assinalados se mostra conforme com a Constituição ou com o Direito da União Europeia. Fundamental, neste contexto, é tão-somente evidenciar que esta concreta solução plasmada na lei revela com nitidez como a existência de uma ordem profissional pode servir para subtrair atividades de mercado à concorrência, neste caso através da interdição de exercício de uma relevante atividade económica por não advogados ou por advogados inseridos numa empresa que não seja sociedade de advogados.

A tendência não constitui propriamente uma surpresa. É sabido que a institucionalização das ordens profissionais correspondeu, em larga medida, ao aproveitamento da tendência inerente a toda a associação profissional de regular o acesso à profissão, de definir padrões de exercício e conduta profissional e de punir as infrações à disciplina profissional. Na verdade, o Estado limitou-se, em muitos casos, a aproveitar as corporações e estruturas representativas de profissões já existentes, publicizando-as e atribuindo-lhes oficialmente tarefas regulatórias.

Tal circunstância faz com que as ordens profissionais sejam simultaneamente associações de defesa de interesses profissionais e entes públicos reguladores, adquirindo, portanto, uma bidimensionalidade privada e pública (VITAL MOREIRA, Auto-regulação Profissional e Administração Pública, Coimbra, 1997,pp. 257 ss). Neste contexto, não surpreende que, em certos casos, o legislador acabe por ser sensível a estas preocupações, intervindo no sentido de regulamentar de forma maximalista o âmbito próprio de actuação de uma determinada profissão. Mas, ao fazê-lo, não resiste à pressão corporativa e introduz limitações relevantes no quadro de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência.

4. A resistência à mudança ou a falta de abertura aos sinais dos tempos

Os exemplos apresentados pretendem apenas evidenciar como, de facto, os grupos profissionais, através das ordens, prosseguem, frequentemente, “dois grandes objetivos: (a) assegurar um monopólio profissional na prestação dos respetivos serviços; (b) assegurar ao grupo o máximo de privilégios” (VITAL MOREIRA, Auto-regulação Profissional e Administração Pública, cit., p. 260). A reforma profunda para que apela o MoU é uma oportunidade para alterar o paradigma. E, neste texto assumidamente contracorrente, a mudança passa igualmente pela transformação da Ordem dos Advogados em fator de mudança e não em força de bloqueio.

Ninguém ignora que o mercado da advocacia é hoje muito heterogéneo e alberga no seu seio situações muito díspares. O Inquérito aos Advogados Portugueses promovido pela própria Ordem evidenciou, há muito, as profundas diferenças de situação dos advogados, incluindo em termos de rendimento e quanto aos níveis de satisfação. Mas, no quadro destas breves notas, impõe-se, sobretudo, não perder de vista que a tendência disruptiva se manifesta ainda no modo de exercício da profissão. Basta, para não ir mais longe, recordar o fosso que separa a advocacia tradicional daquela que é exercida em sociedades de advogados sofisticadas e altamente especializadas ou lembrar que “in between” existem realidades muito variadas de prática de advocacia.

O risco – neste contexto em que proliferam diferentes mercados de advocacia – é o de a Ordem dos Advogados, estruturada segundo um paradigma ultrapassado, não só não ser capaz de se abrir a soluções inovadoras e diferenciadas capazes de assegurar crescente competividade numa actividade que, em parte, se globalizou (e que precisa de acompanhar os benchmarks internacionais), como também ser, ela própria, uma força de bloqueio à mudança. A problemática das sociedades multiprofissionais, a questão da profissionalização dos órgãos de gestão de uma sociedade de advogados ou o problema dos limites à criação de licenciaturas em direito revolucionárias (v.g. integrando, por exemplo, direito e gestão) são apenas alguns exemplos que evidenciam a relevância deste tópico.

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