Advogados Especialistas e Juristas de Reconhecido Mérito – Solução ou Problema?

Não será exagero considerar ostensivo o incremento do poder regulamentar da Ordem dos Advogados, com especial incidência na última década.

Com efeito, a Ordem dos Advogados tem vindo a chamar a si a concretização da regulamentação em novas áreas da advocacia.

A esse respeito, dentro das atribuições acometidas ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados, encontramos duas que mereceram a nossa atenção e especial “reparo”.

São elas: (I) elaborar e aprovar o regulamento da formação especializada, com inerente atribuição do título de advogado especialista; (II) e, bem assim, o regulamento de inscrição de juristas de reconhecido mérito, mestres e outros doutores em direito – al. g), do nº 1, do art. 45º, do Estatuto da Ordem dos Avogados.
É sob os enunciados pontos que nos propomos tecer algumas, breves, considerações.

I – Dos Advogados Especialistas


A pretexto do desenvolvimento socioeconómico sentido nas últimas décadas, aliado à diversidade e complexidade de assistência jurídica e, bem assim, ao aumento do número de advogados, a Ordem dos Advogados Portugueses veio a considerar necessário “diferenciar com a qualidade de especialista os advogados que, pela sua formação e prática, demonstrem habilitação específica em determinada área do direito”, com o intuito de “corresponder à procura cada vez mais selectiva que privilegia a competência específica” – preâmbulo do Regulamento Geral das Especialidades – Regulamento n.º 204/2006 da OA, de 30 de Outubro de 2006.

Não se ignora que o desenvolvimento económico trouxe consigo um aumento exponencial de conflitualidade.

Esta realidade implicou, inegavelmente, para o advogado, a responsabilidade de abarcar toda uma panóplia de (novas) áreas da vida social, anteriormente desconsideradas, relegadas ou mesmo desnecessárias ao exercício tradicional da advocacia.

Sob as antecedentes premissas, no sentido de habilitar a comunidade social com uma informação segura sobre as competências específicas dos advogados, o Conselho Geral da Ordem dos Advogados – na senda do Regulamento n.º 15/2004 (que havia estabelecido um regime transitório sobre a matéria) – aprovou o Regulamento Geral das Especialidades, Regulamento n.º 204/2006, procedendo, assim, à definição do regime de atribuição do título de advogado especialista e definindo as áreas de prática que, dentro do exercício da advocacia, são consideradas especialidades.

A este respeito, importa mencionar que as especialidades atualmente reconhecidas são: o Direito Administrativo; o Direito Fiscal; o Direito do Trabalho; o Direito Financeiro; o Direito Europeu e da Concorrência; o Direito da Propriedade Intelectual; e o Direito Constitucional – conforme Anexo do mencionado Regulamento.

Assim, estará apto a adquirir esse título, o advogado que apresente os seguintes requisitos mínimos: inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, ininterrupta há mais de dez anos, com igual período mínimo de exercício efetivo da advocacia na área da especialidade invocada e a quem seja reconhecida competência específica, teórica e prática.

Ora, o exercício da especialidade implica, por um lado, a prática e aquisição de formação contínua na área respetiva; e, por outro, a entrega ao Colégio das Especialidades – constituído por todos os advogados especialistas, com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados – de um curriculum profissional demonstrativo da prática exercida e da formação adquirida na área da especialidade respetiva, no fim de cada período de cinco anos, a partir da atribuição do título e que se reporte aos cinco anos anteriores.

No que rege à parte procedimental da atribuição do título de advogado especialista, a mesma fica sujeita a um processo de candidatura do advogado – que reúna os requisitos mínimos a que supra se aludiu – apresentado através de requerimento dirigido ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados, no qual o candidato demonstre possuir capacidade para a aquisição do título, designadamente, através da descrição circunstanciada da sua formação e prática jurídica, instruindo o requerimento com os documentos confirmativos da descrição curricular apresentada – informações, naturalmente, sujeitas a sigilo profissional, nos termos do artigo 87.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Autuado o processo de candidatura, o mesmo é presente ao Conselho Geral, para efeitos de nomeação de relator de entre os seus membros, que reenviará o processo para o Colégio das Especialidades, a fim de ser marcada prova oral pública para acesso à especialidade.

A referida prova é prestada perante três advogados especialistas da área da especialidade, que constituirão o júri da prova. Esta prova consiste em debate sobre o currículo profissional apresentado pelo proponente e em debate sobre questões, à escolha do júri, relacionadas com a especialidade cujo título se pretende.
Finda a prova, o júri do Colégio das Especialidades decide, por maioria, considerar o candidato aprovado ou não aprovado.

Seguidamente, o processo – contendo a informação da avaliação – é remetido ao Conselho Geral para efeitos de atribuição do título de advogado especialista, por deliberação, atenta a precedente aprovação perante o Colégio das Especialidades.

Situações há em que o Colégio das Especialidades pode dispensar a prestação de prova oral pública pelo candidato.

A exceção encontra-se prevista no art. 12º, do Regulamento das Especialidades, para os casos em que o candidato apresente “curriculum profissional (…) [que] demonstre manifesta e notória competência específica na área de alguma das especialidades reconhecíveis e desde que reúna os requisitos mínimos”, a que já tivemos oportunidade de aludir.

Posto isto, volvidos seis anos sobre a entrada em vigor do Regulamento Geral das Especialidades, sem depreciar as razões que motivaram a Ordem dos Advogados a considerar a necessidade de prever e regulamentar a atribuição do título de advogado especialista (sejam elas as mutuações sociais ou económicas a que supra se aludiu) e, analisado – ainda que em traços gerais – o referido Regulamento e as condições procedimentais a que a atribuição do referido título está sujeito, questionámo-nos:

- Será pela via da existência e atribuição do título de advogado especialista que se consegue dar resposta à crescente conflitualidade que clama a atenção da Justiça, em geral, e do advogado, em particular – enquanto agente instrumental daquela? Ou o título a que se alude apenas agrava a problemática constatada?
Sem mais delongas, na “opinio” do aqui subscritor, a fragilidade da resposta pela afirmativa à precedente questão – se é pela via da “especialização” se resolve o problema da conflitualidade – reside na própria natureza do título, conforme descrito no n.º 1, do artigo 2º, do Regulamento em causa.

Assim, atendamos ao n.º 1, do artigo 2º do Regulamento Geral das Especialidades: “O título de advogado especialista constitui uma certificação de competência específica na área da respetiva especialidade, mas não limita a prática jurídica do titular, nem impede qualquer advogado de exercer a advocacia na área das especialidades reconhecidas”.

Posto isto, onde reside a ratio da especialidade?

Numa dupla certificação da aptidão para o exercício do direito em geral e de competência específica na área respetiva, em particular?

 Não se escamoteia a realidade da praxis juris: o desenvolvimento económico trouxe consigo um aumento exponencial de conflitualidade, atendendo a uma maior procura do valor Justiça, no seu todo, fomentada, por um lado, pela crescente consciência dos cidadãos relativamente aos seus direitos e, por outro, por uma maior acessibilidade à tutela efetiva daqueles direitos, nas mais diversas áreas que o Direito encerra.
Como se disse, esta realidade implicou, inegavelmente, para o advogado, a responsabilidade de abranger outras áreas da vida social, tradicionalmente afastadas ou supérfluas àquelas que se consideravam constituir o exercício “comum” da advocacia.

Contudo, a crescente conflitualidade e complexidade do Direito decorre de fatores que não são, em si, sectorizáveis.

Na análise do todo, a sectorização não resolve a problemática vertida, mas outrossim, poderá contribuir para agravá-la.

Com efeito, não podemos deixar de acentuar o periclito do próprio advogado especialista, acostumado a atuação estrita – no âmbito da sua especialidade – poder, em determinadas situações, subversivamente, colocar em risco a cabal resolução da questão a que se propõe dar resposta.

Todo aquele que atua dentro da tecnicidade própria de uma sectorização exacerbada, tendenciosamente se verá castrado do todo, inclinando-se (ainda que irrefletida e involuntariamente) a resolver, unicamente, as questões técnicas a que é chamado, sem se ater à visão da generalidade ou do todo.

Na situação hipotisada, o advogado encontrar-se-á amputado das demais soluções a que o Direito se propõe acautelar e solucionar, seja de forma preventiva ou curativa, por intermédio dos seus inúmeros institutos.

Por outras palavras, se o advogado especialista pode atuar nas restantes áreas e o “generalista” também pode exercer nas áreas de Direito para as quais não se encontra titulado por qualquer especialização, não será despiciendo insistir: - qual a utilidade do título?

 Se é permitido o exercício da advocacia “a todos os licenciados em direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados”, em todo o território nacional, para todos os atos próprios da profissão e, em todas as áreas que o direito abarca, que razão última subjaz à atribuição de títulos de especialidade?
As causas não se poderão ater a circunstâncias extrínsecas, certamente. Não fora assim, jamais poderia bastar ao exercício da advocacia, a titularidade de licenciatura em direito e a inscrição na Ordem dos Advogados (art. 61º do Estatuto da Ordem dos Advogados).

Posto isto, tentados ficamos a concluir que a razão preponderante prender-se-á com a publicidade que a aquisição e manutenção do título permite ao advogado, deste detentor.

Mas se a razão última é de publicidade, não podemos evitar a constatação que a mesma publicidade que atrai – qual íman – o cidadão para o advogado especialista, em matéria da sua especialidade, pode constituir o mesmo fator que afasta o referido cidadão do advogado especialista, noutras áreas que não a da sua especialidade, por considerá-lo (ainda que erradamente) desprovido de competência técnica para dirimir questões de outro foro que não aquele, preterindo-o, nestes casos, ao advogado generalista.

Atentos os efeitos perniciosos da publicidade – que, a priori, seriam sempre benéficos ao advogado que pretenderá, naturalmente, de forma legítima e lícita, angariar clientela – não se poderá ter como certo, absoluto ou evidente – como nada o é na vida ou no Direito – que tão pouco, por via desse argumento, se justifique a defesa da “especialização”.

Ademais, já tivemos a oportunidade de analisar que a sectorização poderá, nalguns casos, conduzir o advogado “especialista” a atuar descontextualizado do todo, o que poderá potenciar o incremento da conflitualidade – a qual se pretende acautelar ou dirimir.

A análise vertida leva à seguinte reflexão: não serão precisos mais advogados ou tão pouco (mais ou menos) advogados com o título de especialista, em quaisquer das áreas, atualmente reconhecíveis, nos termos do Anexo do Regulamento Geral das Especialidades.

Serão, outrossim, necessários melhores advogados, sendo certo que a idoneidade, competência, qualidade, brio, adequação e empenho no exercício da profissão não são mensuráveis em títulos.
Muito menos é defensável a ideia, a cuja crítica aqui nos permitimos, se considerarmos as “desiguais” possibilidades de atribuição do título de especialidade.

Recordemos que à regra da atribuição “precedida necessariamente da aprovação do candidato na prova oral pública, prestada perante o Colégio das Especialidades” (n.º 1 do art. 10º), se admite a exceção de “dispensar a prestação de prova oral pública pelo candidato, nos casos em que o seu curriculum profissional (…) demonstre manifesta e notória competência específica na área de alguma das especialidades reconhecíveis” (art. 12º).

Desta feita, sem desprimor pela intentio necessariamente incompleta subjacente à regulamentação da matéria, não resta outra conclusão que não seja a da recusa da defesa da sectorização e da recusa do recurso ao elogio “fácil” à “competência específica”, uma vez que não se enxerga razão válida e ponderosa para a atribuição do título de advogado especialista, questionada aqui que vai ser, a breve trecho, a utilidade da atribuição do referido título.

Pelo menos, no momento atual, a existência de advogado especialista não contribui para a solução do problema da realização da Justiça ou tão pouco para a consagração de um consistente Estado de Direito – apanágio do respeito da hierarquia das normas, da separação dos poderes e dos direitos fundamentais – mas coadjuvará, ao invés, à consagração da ideia e da prática da sectorização, que não poderá ser panaceia para apenas, aparentemente, se afirmar o mesmo Estado de Direito.

O problema da realização da Justiça no que respeita ao papel dos advogados reclama, a nosso ver, não tanto a existência de advogados especialistas, mas sim a de melhores advogados que, munidos da adequada formação e informação, sejam capazes de perspetivar e resolver de forma global e integral as questões que lhe sejam acometidas, sem descuidar, no tratamento da parte ou das singularidades próprias do caso, que essa mesma parte integra um “todo”.

De tudo o que se disse, com a consciência de que não foi feita a reflexão tão exaustiva quanto a matéria reclama e se deseja, podemos concluir que, no atual contexto socioeconómico, com a regulamentação aprovada – atinente à atribuição do título de advogado especialista – corre-se o risco do advogado especialista, na mais das vezes, poder fazer parte – ou, pelo menos, ajudar a complexizar a solução – do problema da realização da Justiça, ao invés da solução a que se propõe ser.

II – Dos Juristas de Reconhecido Mérito, Mestres e Doutores em Direito, Para A Prática da Consulta Jurídica 


No âmbito do referido poder regulamentar da Ordem dos Advogados, veio a mesma estabelecer o regime de inscrição, na Ordem dos Advogados, de juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em Direito exclusivamente para o exercício da consulta jurídica, através do Regulamento n.º 111/2006, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 120, de 23 de Junho de 2006.

Ora, a consulta jurídica – ato próprio da profissão de advogado – encontra-se definida no artigo 3º da Lei n.º 49/2004 como “a atividade de aconselhamento jurídico que consiste na interpretação e aplicação das normas jurídicas mediante solicitação de terceiro”.
 Importa mencionar que a referida Lei n.º 49/2004 criou um regime sancionatório inovador, tipificando o crime de procuradoria ilícita, que se sobrepõe ao crime de usurpação de funções, previsto no art. 358.º, do Código Penal.
Não obstante, não deixou de considerar-se, de forma correta, a nosso ver, que para além do advogado, do advogado-estagiário ou do solicitador, também os juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em Direito, se possam vir a considerar aptos para a exercício da consulta jurídica – solução merecedora de tutela.

Posto isto, a Ordem dos Advogados veio a admitir a inscrição de juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em Direito, cujo título seja reconhecido em Portugal, para a prática de atos de consulta jurídica, mediante a prévia realização de um exame de aptidão.

No que tange à questão procedimental, o requerimento de inscrição é entregue nos serviços do conselho distrital a cuja área pertença o domicílio profissional escolhido como centro da vida profissional do requerente e dirigido ao conselho geral, cabendo ao conselho distrital a cuja área pertença o referido domicílio profissional indicado, a apreciação preliminar do requerimento de inscrição.

Posteriormente, o referido requerimento de inscrição é remetido ao conselho geral para decisão.
Posto isto, o conselho geral aprecia o requerimento de inscrição apresentado junto do conselho distrital, a fim de verificar se o requerente reúne as condições para vir a ser inscrito e, se for o caso, notifica-o da admissão ao exame.

O exame de aptidão – previsto, desde logo, no n.º 2 do artigo 193.º do EOA, para o qual o art. 6º do Regulamento em causa, expressamente remete – tem por fim avaliar a experiência profissional e o conhecimento das regras deontológicas que regem o exercício da profissão de advogado e consiste na prestação de uma prova pública oral subordinada ao currículo profissional apresentado pelo candidato e à deontologia profissional.

Uma vez obtida a aprovação no exame de aptidão, a deliberação do júri – adotada por maioria e expressa pelas menções «Aprovado» ou «Não aprovado» - é junta ao requerimento de inscrição, e este é submetido a deliberação final do conselho geral.

 Findo o procedimento, o licenciado, mestre ou doutor em Direito, inscrito na Ordem dos Advogados, identifica-se, no exercício da sua atividade, pelo título académico respetivo, seguido da menção «Inscrito na Ordem dos Advogados para o exercício de consulta jurídica», sendo-lhe entregue uma cédula profissional comprovativa dessa qualidade.

A virtualidade da abertura da Ordem dos Advogados à inscrição do licenciado, mestre ou doutor em Direito, que se tenha submetido ao procedimento de inscrição precedentemente explicitado, traduz-se na mais-valia de tais profissionais ficarem habilitados à atividade de consulta jurídica, permanecendo, ainda assim, intocado o interesse público da profissão – que, como se sabe, se traduz na necessidade da função social da mesma profissão, efetivada e garantida por profissionais com responsabilidades deontológicas tuteladas pelo poder disciplinar da associação pública a quem o Estado delegou tal poder.

 Não se prescindindo do supra citado exame de aptidão, consideramos que os juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em Direito inscritos na Ordem dos Advogados, estarão aptos a servir os interesses da Justiça, com especial enfoque para a sua vertente preventiva.
Por último, não poderíamos deixar de mencionar que, permitindo-se a inscrição na Ordem dos Advogados aos juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em Direito, ficam que os mesmos sujeitos à jurisdição disciplinar da Ordem dos Advogados e às regras profissionais e deontológicas aplicáveis aos advogados, com as necessárias adaptações.

Assim, ser-lhes-ão, designadamente, aplicáveis as disposições estatutárias e regulamentares relativas às incompatibilidades e a impedimentos, à deontologia profissional, e ao pagamento de quota mensal e a outros encargos devidos pela inscrição – solução, a nosso ver, louvável e sem mácula.

Augusto Aguiar Branco

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