DIREITOS HUMANOS (epítome histórico)

Quando um discorrente fala de Direitos Humanos acode ao sentido do auditor a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, parida da Revolução Francesa, com a mesma naturalidade com que a saliva acudia à boca do cão de Pavlov quando lhe cheirava a comida.

Mas essa “bandeira” da Revolução Francesa, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, em 26 de Agosto de 1789, careceu da espontaneidade da salivação do cão de Pavlov, no ponto em que, sendo revolucionária, não foi original. Vale por dizer: não foi um ponto de partida — como não viria a ser um ponto de chegada.

O antecedente imediato da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi o “Bill of Rights” que encorpou a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 1789, por proposta de James Madison no Primeiro Congresso dos Estados Unidos.

O “Bill” já havia sido apresentado e discutido na Constituinte de 1787 (Convenção de Filadélfia) mas, em consideração do seu cariz controverso, foi retirado dos trabalhos para não atrasar a aprovação da Lei Constitucional.

No “Bill” foram elencados o direito à vida, à propriedade e à justiça — esta através de júri e em pé de igualdade para todos.

Relativamente ao direito à liberdade, pôs-se a tónica na vertente religiosa e ficou-se por aí, porquanto, três Estados do Sul (Geórgia e as duas Carolinas) tinham ameaçado abandonar a Convenção quando foi formulada a proposta de proibição do tráfico e importação de escravos.

Também a matéria desta Primeira Emenda não nasceu por geração espontânea Ela teve antecedentes no Direito Constitucional inglês, vindo a talhe de mão justificar esta influência com o facto de a independência americana não ter sido alcançada por americanos, mas por britânicos, na medida em que os americanos de origem (índios) já, então, eram vítimas do programa expresso, depois, no tropo de que “o melhor índio é o índio morto” — significando uma abjecta negação do mais básico dos direitos humanos (o direito à vida) na Pátria da “Primeira Emenda”.

Conseguida a independência, não dos americanos, mas dos britânicos, é força que o direito e a tradição adoptados fossem os da pátria-mãe. E a Inglaterra tinha uma longa tradição de luta vitoriosa contra o despotismo e a prepotência reais, com o início na Carta de Liberdades do ano de 1100, através da qual o rei Henrique I conferiu liberdades civis aos súbditos eclesiásticos e nobres.

A Magna Carta, imposta pelos barões e burgueses e jurada, sem convicção, pelo rei João Sem Terra, em 15 de Junho de 1215 (que constituiu um desenvolvimento da “Carta de Liberdades”) estabeleceu, no seu artigo 61º, a célebre “Cláusula de Segurança” que representou a génese dos futuros Parlamentos — um Conselho, formado por vinte e cinco barões, dispunha de poderes para alterar qualquer decisão real.
Outras disposições atinentes ao tema deste escrito são as dos artigos 39.º e 40.º.

O art.º 39.º estabelecia que nenhum homem livre será preso, detido, privado de uma propriedade, posto fora-da-lei, exilado, ou de qualquer forma aniquilado … a não ser através de julgamento legal dos seus pares, ou por regra da terra”.

Nos termos do art,º 40.º, o rei subordinava-se à seguinte declaração jurada: “A ninguém venderemos, atrasaremos, ou recusaremos, o direito e a justiça”.

O João Sem Terra, falecido no ano seguinte, nunca tencionou dar cumprimento aos trâmites da Magna Carta.Conseguiu, através de dinheiro contado, que o Papa impusesse a Deus a iniquidade da anulação do juramento feito em nome d’Ele (porque o dinheiro é quem mais ordena nos arranjos da Terra e do Céu) e, na sequência, resiliu o juramento — com o assentimento expresso do seu filho e sucessor Henrique III.
Por que o Céu é mais venal do que a Terra, o perjúrio, autorizado Além, não foi aceite Aqui. Ao anúncio da perfídia, “levantou-se maior altercação que a de Pedro, o Cru, com seu irmão” e a Magna Carta continuou em seu vigor, embora decepada da “Cláusula de Segurança”.

A Magna Carta configurou um tratado de direitos dos súbditos e de deveres do soberano, sendo, geralmente, considerada como o instrumento que demarcou o início da monarquia constitucional na Inglaterra.
O passo definitivo para este regime — que viria a servir de paradigma à Primeira Emenda e à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão — foi dado pelo “Bill of Rights” de 1688, cujo dispositivo, jurado por Guilherme de Orange e sua mulher, Maria II, condicionava a investidura real de ambos ao assentimento do próprio Parlamento.
Este “Bill of Rights” consistia numa carta de direitos, anexada ao “Acto” do Parlamento de 16 de Dezembro de 1689, composta de dezasseis pontos de cariz político — reconhecimento do regime de Governo semi-parlamentar, sem inclusão do Terceiro Estado — mas, também, civil.
Relativamente a este, elegia, como universais e invioláveis, os direitos à vida, à liberdade e à propriedade privada.
O documento, reflectindo o eco da fratricida guerra religiosa entre católicos e protestantes, estabelecia a absoluta liberdade de culto para todos. Para todos, menos para o rei, que não podia ser católico.

Em face deste histórico, é de primária dedução que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, sistematizou mais do que inovou. Ela sincretizou a “Constituição” inglesa, a “Primeira Emenda” americana e o sistema filosófico-político do Iluminismo (consistente na doutrina do exercício da governança pelos mais esclarecidos) nascido dos escritos progressistas de autores franceses como Voltaire, Rousseau e Diderot, entre muitos. Não saltava à vista quais eram os mais “esclarecidos”, mas o Iluminismo era a moda e “o que é moda não incomoda”.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa em 26 de Agosto de 1789. A “Declaração” reconheceu como de génese natural e natureza inviolável os seguintes direitos do homem:
— Todos os homens nascem livres e iguais, em direitos (art.º 1.º);
— Os homens são livres de praticar, ou de não praticar, tudo que não seja proibido (art.º 4.º);
— A Lei é a expressão da vontade geral e todos os cidadãos têm o direito de concorrer pessoalmente, ou através de mandatários, para a sua formação (art.º 6.º);
— Ninguém pode ser condenado sem a precedência de regra incriminadora do acto (art.º 7.º);
— A inocência presume-se até à declaração judicial de culpabilidade (art.º 9.º);
— Todos têm liberdade de opinião e de religião (art.º 10.º), bem como da respectiva expressão (art.º 11.º);
— É assegurado o direito de propriedade individual (art.º 17.º).

Actualmente, existem vários diplomas condensadores destes direitos com vocação ecuménica, dos quais se destacam a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” de 1948 e a “Convenção Europeia dos Direitos Humanos” de 1950.
Na sua substância, estas não se avantajaram muito à velha “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, se descontarmos a lista acrescentada de direitos de “compor o ramalhete”, como o do direito ao trabalho, ou o do direito à habitação, arrolados para ir enganando papalvos até se aperceberem que ninguém está vinculado aos correspondentes deveres.
Mas, se não se elevam à “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, no que toca ao conteúdo, sobrelevam-na, acentuadamente, no que toca ao âmbito de incidência, no ponto em que a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” visava, apenas, o homem varão, enquanto as modernas “Cartas” de direitos fundamentais se dirigem ao Homem, na significação de ser humano.
Na língua francesa, como no idioma português, os termos “homem” e “cidadão”, a par do sentido restrito, contêm um significado lato, que abarca a mulher e a cidadã.

A partir desta realidade, há quem alegue que, ao referir “homem” e “cidadão”, a “Declaração” abrangia os dois sexos. Sem embargo, esta tese é desmentida pelo dispositivo do art.º 6.º que atribuiu aos cidadãos o direito de concorrer pessoalmente, ou através de mandatários, para a formação das leis, sendo que as mulheres, carecendo de capacidade eleitoral activa e passiva, não tinham o direito de “formar as leis”, quedando-se fora da pauta.
Esta circunstância era denunciada pelas próprias “tricotadeiras” (activistas que assistiam aos debates parlamentares fazendo renda) ao deplorarem que o único ponto de igualdade que tinham com os homens fosse o do acesso à guilhotina.

Com o imodesto sentimento de superioridade que caracteriza a propensão geracional para o auto-elogio, fanfarronamos que o reconhecimento dos direitos humanos constitui uma conquista civilizacional do nosso Tempo. Somos nós que tangemos a música celestial privativa do estado de Graça de civilizados. E tangemo-la nos mesmos termos em que, antes, a tangeram os nossos avós e os avós dos nossos avós.
Pesporrências aparte, a verdade é esta: sempre que uma Lei, ou um Costume, veda a morte de homem, a violação de mulher (alheia), ou o roubo de Igreja, está a conferir, por derivação, direitos humanos às vítimas reais, ou potenciais.

As normas deste pendor são indispensáveis na regulação da vida em sociedade, pelo que a sua redacção é, praticamente, tão antiga como a própria invenção da escrita.  A música celestial foi tangida, sabe Deus quando, pelo Homem pré-histórico, sendo que todas as Civilizações letradas da Antiguidade nos legaram testemunhos de Ordens Jurídicas “civilizadas” as quais, em matéria de interesses tutelados, não se afastam muito (ou não se afastam nada) das nossas.

Não cabe no âmbito deste escrito um mínimo bosquejo histórico dos Sistemas Jurídicos da Antiguidade. Em todo o caso, tratando da história de Direitos Humanos, tem valimento uma referência, ainda que perfunctória, às suas primeiras formulações conhecidas. Concretamente, aos sistemas mesopotâmicos, hebreu e egípcio, a quem os deuses foram servidos de privilegiar com ordens jurídicas escritas.

Sempre que adrega referir o Direito (ou os Direitos) dos antigos Povos Mesopotâmicos vem à mente o Código de Hammurabi, do início do século XVII, a.E.C..
Não é o mais antigo, porquanto, anteriores a ele são o “Código” de Uru-Kagina e de Ur-Nammu, ambos do final do terceiro milénio da era pré-cristã, o “Código” de Lipit-Istar de Isin, de cerca do ano de 1870 a.E.C. e as “Leis de Eshnunna”, pouco anteriores a este.

Porém, com ser menos antigo, o Código de Hammurabi é o mais completo e bem preservado, pelo que se lhe confere o atributo de representador do Direito Mesopotâmico. No ponto de dar prevalência a este diploma, laboramos como o noctívago que procurava a carteira debaixo do candeeiro público, não por a haver perdido nesse lugar, mas porque era aí que tinha luz para o fazer.

Não adianta sobremaneira e seria fastidioso seguir o texto de fundo dos diplomas legais mesopotâmicos, pois eles configuram os crimes que constituem o elenco tradicional dos Códigos Penais modernos: homicídio, roubo, rapto, incêndio, burla, falso testemunho, inconfidência, perjúrio, etc.

Tem mais interesse rebuscar no “Prólogo” dos que nos chegaram o escopo programático dos respectivos reis ao promulgarem os “seus Códigos”. Com efeito, a “ratio” da legislação está contida nos Prólogos e é presumível que todos os nomeados diplomas legais (com a provável excepção de Eshnunna) os contivessem.

Assim:
No de Hammurabi:
— Em V, 20, o rei declara que foi encarregado pelo deus Marduk de fazer justiça aos Povos, de ensinar o caminho recto ao País, de estabelecer a Verdade e o Direito nas relações dos súbditos e de promover o bem-estar do Povo:
— Em I, 30, o rei segue a ordem do mesmo deus para fazer surgir a Justiça na Terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco, para que o Sol se levante sobre as cabeças dos habitantes de Babel e ilumine o País.
No de Ur-Nammu
No Prólogo deste diploma o rei expressa, solenemente, a intenção que o determinou:  O órfão não será entregue ao rico;  a viúva não será entregue ao poderoso;  e o homem de um siclo não será entregue ao homem de uma mina.
No de Lipit-Istar
O mesmo propósito ressalta do Prólogo deste “Código”, ao consagrar que os deuses Anu e Enlil, nomearam Lipit-Istar para governar o território em ordem a estabelecer a justiça na terra, banir os lamentos, abolir a inimizade e a rebelião através das armas e para trazer o bem-estar aos sumérios e aos acádios.

Fora do âmbito sumério-acádico, um outro conjunto de Leis mesopotâmicas que, parcialmente, resistiram aos baldões do Tempo e aos malefícios dos Homens, foi o das Leis Assírias de meados do segundo milénio a.E.C..

Há várias fracções de exemplares do texto das Leis Assírias, mas só as placas classificadas, pelos estudiosos, de “A” e “B” apresentam incorrupção suficiente para serem legíveis, em alguma extensão.
A “codificação” não contém intróito (parece ser uma compilação particular de leis) e o âmbito da previsão legal conhecida limita-se aos crimes de roubo, dano, aborto e delitos sexuais, na prancha “A”, suborno, na prancha “L” e blasfémia, na prancha “N”.

O estado fragmentário das placas impede o alcance da compreensão do Direito assírio na sua plenitude, mas os tipos de crime das previsões que resistiram à mutilação dos assentos, demonstram a preocupação do Legislador pela defesa de princípios fundamentais de Ordem Pública.

Em sede de “Códigos” Legislativos da Antiguidade, aquele que mais bem conhecemos é, naturalmente, o Livro do Êxodo do Antigo Testamento.
A sua autoria é atribuída a um homem (ou a um mito) chamado Moisés, que terá conduzido a fuga dos Hebreus do Egipto.
A data da composição é muito incerta. A ser fiável a informação de I Reis, VI, 1, que situa o início da construção do Templo de Salomão quatrocentos e oitenta anos depois da fuga do Egipto, esta teria ocorrido no ano de 1447 a.E.C.
Não há qualquer prova arqueológica deste acontecimento e o “Código” de leis contido no Êxodo está formal e substancialmente, muito mais ligado aos Direitos mesopotâmicos do que ao egípcio.

O âmago da ementa dos deveres é constituído pelo decálogo de Êxodo, XX, 3-17 (repetido em Levítico, XIX, 3-20) constituído por oito injunções omissivas e duas assertivas: Não terás outro Deus, não farás imagem para ti (ídolo), não invocarás o nome de Deus em vão, guardarás o descanso sabático, honrarás pai e mãe, não matarás, não adulterarás, não roubarás, não testemunharás falsamente, não cobiçarás a casa do teu próximo, nem a sua mulher, nem o seu boi, nem o seu burro, nem o seu escravo, nem qualquer outra coisa dele.
A maioria destes imperativos caberia, pelo seu fundo, em qualquer actual Declaração de Direitos Humanos e a prova do dito é que o Decálogo, com ligeiras adaptações, constitui a base dos Dez Mandamentos que seguem sendo a quinta-essência da ética cristã.

Do Antigo Egipto não emergiram, sabidamente, quaisquer leis e, muito menos, colecções de leis.
Seguramente, o Direito era consuetudinário. Sem embargo, através de meios indirectos (o “Livro dos Mortos”) apreendemos o modelo ético adoptado pela sociedade egípcia — com a prevenção de que, em relação a uma grei que evoluiu por mais de três mil anos, só muito imprecisamente se pode considerar a existência de, apenas, um modelo ético.

A vida é movimento, o movimento é mudança e o próprio “Livro dos Mortos” se configura como o agregado de uma multi-milenar colecção de escritos.

A circunstância desmudou, forçosamente, em três milénios, mas o fundo, aquele em que, do comportamento do morto se extrai o ideal de conduta do vivo, permaneceu, em razão de provir de irrogação divina.
A fracção que, primeiramente, vem ao tema é a do julgamento do falecido, por parte dos deuses.
Concretamente, por parte de Anúbis, que presidia ao sopesamento do paiol de defeitos e virtudes do morto, antes de estar morto, para apurar o sinal positivo, ou negativo, do saldo.

A operação era significada pela pesagem, em balança de precisão, do coração do finado.
A salvação vinha determinada pela conjugação dos efeitos emparelhados do comportamento vivencial do falecido e de um complexo ritual, que se iniciava pela dádiva de peitas aos próprios “juízes” em géneros alimentícios e outros sortimentos.

Naturalmente que, de preferência ao conhecimento da eficácia salvífica dos subornos à divindade, interessa ao assunto o fundo das alegações de defesa que o próprio julgando (ou, segundo algumas “Tábuas” do Livro, o deus Thoth, seu patrono) proferia no decurso do julgamento.

A fórmula “o meu coração carrega rectidão e verdade; não há pecado em meu corpo; eu nunca menti; eu não fiz nada com falso coração” é recorrente no Livro dos Mortos (cf. Tábuas XI, XII e XVI).

A par deste modelo, é de salientar o conteúdo dos textos, também eles, tabeliónicos, do apêndice da tábua CXXV e da tábua XXXI-XXXII que, por serem mais descritivos e conterem aptidão para ser cotejados com qualquer das modernas Declarações de Direitos Humanos, merecem uma consideração especial.
Trata-se de alegações de defesa do morto na presença do respectivo deus-julgador — no caso transcrito, Osíris.

Os textos são assaz longos e semelhantes — o segundo contém uma declaração numerada de quarenta e dois tipos de crimes que o arguido declarou não haver cometido — pelo que, apenas, se transcreve o primeiro:
Depois de se louvar na circunstância de conhecer não só o nome de Osíris, como, também, o dos outros quarenta e dois deuses e de adular o juiz com uma introdução laudatória, o “réu” passa a substanciar a sua defesa: … eu trago, perante ti, a Justiça e a Verdade. Porque, por causa de ti, eu rejeitei a maldade. Eu não lesei ninguém, nem tenho concebido o mal, em meu peito. Eu não cometi qualquer infracção à Justiça e à Verdade. Eu não conheci o mal, nem actuei maldosamente. Diariamente, trabalhei mais do que me era exigido…Eu não desprezei Deus. Eu não causei a miséria; nem engendrei a aflição. Eu não fiz nada que Deus abominasse. Eu não causei nenhum mal. Eu não pratiquei nenhum daqueles danos que os escravos sofrem dos seus donos: Eu nunca causei dor a ninguém. Eu não fiz ninguém chorar. Eu não assassinei ninguém, nem pedi a alguém que assassinasse, em vez de mim. Eu não prejudiquei quem quer que fosse. Eu não furtei o que quer que tivesse sido oferecido aos Templos; nem roubei os bolos dos deuses. Eu não retirei as ofertas feitas ao morto abençoado. Eu não cometi fornicação, nem corrompi o meu corpo. Eu não acrescentei, nem diminui as ofertas devidas. Eu não assaltei os pomares, nem talei os campos. Eu não alterei o rigor das balanças, sobrecarregando, ou aligeirando os respectivos pratos. Eu não arrebatei o leite da boca da cria. Eu não desloquei o gado das suas pastagens. Eu não desviei a água dos deuses. Eu não pesquei peixes com engodo dos seus próprios corpos. Eu não desviei a água da sua corrente natural. Eu não destruí o aqueduto. Eu não extingui o fogo na totalidade. Eu não desrespeitei as sasões adequadas para fazer as ofertas previstas. Eu não retomei o gado já apartado para os sacrifícios. Eu não desacatei as procissões de deus. Eu estou puro...”

O “Livro dos Mortos” — que, apesar do rótulo, foi escrito por vivos — é constituído por uma sobreposição de textos que vêm desde a primeira metade do terceiro milénio a.E.C. até à emergência da helenização com o advento dos Ptolomeus.

Se o adoptássemos como modelo ético para as actuais sociedades “civilizadas” talvez estas fossem mais civilizadas.

Independentemente das datas de cada um dos nove escritos referidos (alguns deles do terceiro milénio anterior à era comum) cujo estudo não cabe no âmbito do bosquejo, nem na competência do bosquejador, o que deles podemos deduzir é que injunções como as de “não matarás”, “não roubarás”, “não mentirás”, “não lesarás”, são universais e intemporais, denunciando a nossa fatuidade na jactância da invenção dos Direitos Humanos, como consequência do aporte de uma chispa de bafejo divino, ou da universalização de uma sequela da Revolução de 89.

A finalizar o falejo, vem à colação a referência a dois direitos, entre si, entretecidos: um, o direito à vida, por ser muito linguajado, (conquanto, menos acatado) e o outro, o direito à morte, por não ser, nem linguajado, nem acatado.

O distintivo da noção de direito é a permissão de o seu titular o exercer, ou não exercer, a seu talante. O direito à vida, como o direito de propriedade, ou outro qualquer, traduz-se na faculdade de dispor, livremente, do seu objecto.

A imposição de, mesmo a contra-gosto, exercitar um “direito” retira-lhe a feição de direito para o transformar num dever.

Aquilo que as declarações de Direitos Humanos e as Constituições modernas escrevem na primeira linha da ordem, é o direito à Vida. Aquilo que o nosso preconceito nos induz a ler na primeira linha da ordem, é o dever de ter Vida.

O estigmatizador do instituto da eutanásia, que enxerga nas Constituições o que lá não está, transforma-se de Juiz em Legislador (e em Legislador Constitucional) mediante a deliberada confusão dos conceitos.
Naturalmente, que o escamoteado não é o direito ao suicídio, por ser impossível escamoteá-lo — “burro morto não tem mezinha”. O que se subtrai ao seu figurado titular é a faculdade de poder escolher uma forma de morte com dignidade e sem sofrimento.

Já ficou referido o plano implementado pelos adventícios habitantes brancos dos Estados Unidos, em relação aos nativos — plano que, a seu tempo, viria a culminar no genocídio índio da segunda metade do século XIX.

O General Philip Sheridan, na execução da carnificina, exprimiu uma sisuda assertiva que resumia o programa: Os índios que eu matar hoje, não tenho de matar amanhã — uma frase de memorial que referenda a parémia de que “morrer é ir à frente”.

Os índios do genocídio americano somos todos: os que já morreram hoje, e os que virão a morrer amanhã. A morte é o destino e o surpreendente é que seja preciso enfatizar esta evidência.

Este faluco, de baixa filosofia, conduz-nos ao outro direito (o direito à morte) que, curiosamente, vem testemunhado e observado desde época muito anterior à do próprio direito à vida.

O direito à dignidade de morto chega-nos de eras anteriores ao aparecimento do ramo étnico do Homem actual (“sapiens, sapiens”). Um dos exemplos mais temporões respeita aos restos mortais de um Neandertaliano do Monte Carmelo que denotavam ter fruído de uma inumação ritual — porventura a primeira manifestação espiritual do Homem em construção.

O direito à morte com a solenidade condicionante de vida futura constituiu a “ratio” das pirâmides egípcias, edificadas para servir de ponte de passagem do morto, ao partir deste Mundo para o seio dos deuses.
Outra providência destinada ao bom passadio do falecido traduziu-se no embalsamamento do seu cadáver.
As mumificações, destinadas à preservação do corpo do finado no sentido de não vir a fazer ruim figura no Além quando fosse caso da sua reunião à respectiva alma, tiveram a máxima expressão no Egipto Antigo, principalmente durante as culturas de Naqada.

Mas os egípcios, com serem os mais fecundos, não foram os únicos a conferir à morte a característica de um estágio de passagem para grandes desígnios de vida. A crença era assaz difundida, tendo sido achadas múmias em diversas regiões da Europa, Ásia e África de que constituem exemplos Ötzi, nos Alpes italianos, Tollund, na Dinamarca, Lindow, na Inglaterra, Chehrabad, no Irão, Cundinamarca, na Colômbia e Guanajuato, no México.

À prática antiga de preservar o morto para a recomposição com a alma, contrapõe-se a prática moderna de dispersar as cinzas dos martirizados pela morte na fogueira, para a alma nunca mais as vir a encontrar.
Esta é uma torpeza que chegou aos nossos dias como apanágio da conjugação das forças vivas da Terra e do Céu.

O Dom Quixote, num assomo de lucidez, perorou que, por muito engenhoso que seja um vigarista, não descobre traça de burlar o próximo que outros não tenham, antes, inventado. Em consonância, nem Hitleres, nem Torquemadas, em matéria de selvajaria, atremaram expediente que sustivesse originalidade.
Em sede do desrespeito institucional pela dignidade na morte, os exemplos são mais que muitos, pelo que seria ocioso catá-los. Há, porém, dois que alcançam mérito de citação — um por constar de diploma já citado, outro pelo significado que apresenta para a nação cristã:

A

O primeiro tem parte com as aludidas Leis Assírias e integra o § 53, col. VII, n.os 93-101, da prancha “A”: Se uma mulher, lançou fora, por sua própria vontade, o fruto do seu seio e se se produzir, contra ela, acusação e prova, ela (morrerá) empalada e não será enterrada; Se ela morreu ao lançar fora o fruto do seu seio, será empalada e não será enterrada.
Esta previsão alternativa com o mesmo desenlace, traz à memória o ordálio que o Santo Ofício realizava na pessoa das acusadas do crime de bruxaria: a “ré” era lançada à água e, se não morresse afogada, morreria queimada — pelo significado de culpa que se inferia da ocorrência da sua rejeição pela água do baptismo.
O desfecho, numa ocorrência e noutra, era a morte — como era o empalamento e a negação de sepultura da abortante, quer morresse, quer vivesse. Porém, com uma diferença devida à infinita caridade cristã dos Inquisidores: Da circunstância de a acusada não sair viva da água depreendia-se a inocência dela e, em consequência, concedia-se-lhe a mordomia de poder beneficiar de rezas por alma.
Isto é, respeitava-se-lhe o direito à morte, conquanto se lhe tivesse ofendido o direito à vida.
Relativamente à cominação assíria do aborto, é deduzível, da contextura do preceito, que a falta de inumação é excepcional, pois se fosse uma consequência inevitável da pena capital, o Legislador dispensar-se-ia de a referir.

B

O segundo remete-nos para o Direito Romano e respeita à semelhança entre duas Leis da respectiva Ordem Jurídica: a Lei de Lesa-Majestade e a Lei Júlia de Sedição.
Ambas constavam do complexo legal designado por Lei Júlia de Violência Pública (lex Julia de Vi Publica), sendo uma delas, a de Sedição, estatuída pelo próprio Júlio César, e a outra, a de Lesa-Majestade (ou “Majestas”), proveniente da velha Lei das XII Tábuas, que Júlio César adaptou e integrou no conjunto.

A curiosidade da invocação é que Jesus Nazareno foi condenado à luz de uma destas Leis, não se sabendo por qual delas, por mor de a previsão ser assaz semelhante e de ambas terem a mesma cominação.
Segundo Ulpiano (Digesto, Lv. XLVIII, Tit. 4.º, n.º 1) a “Maiestas” abrangia todos os actos praticados contra o Povo romano, ou contra a sua segurança.

Relativamente, à previsão da Lei da Sedição, Cícero, em Pro Caelium, XXIX, 70, reportou-a à finalidade da defesa do Império, da Majestade, do Estado, da Pátria e da saúde de todos.
As penas cominadas também eram parcialmente coincidentes, do ponto em que ambas previam a morte, por crucificação, no caso de escravos, bandidos e estrangeiros.

A diferença estava em que a “Maiestas” lhe acrescentava uma penalidade complementar: a danação da memória (do condenado) — Cf. Institutiones de Justiniano, n.º 3, do tit. XVIII, do livro 4.º.
A danação da memória, comportava, entre outros vitupérios, a negação de sepultura.

Como do extracto se alcança, a danação da memória — por só se aplicar a escravos e equiparados e numa modalidade restrita de pena — constituiu uma providência excepcional do Direito romano.

Assim, no ponto em que, reconhecendo o “direito do morto, à morte”, só pontualmente, lho frustrava, esta Ordem Jurídica demonstrou maior respeito pelo direito à morte do que pelo direito à vida.

No ano de 1939, para fingir preocupações com a gente indígena, o Presidente da República, General Óscar Carmona, visitou a colónia de Moçambique e, dentro desta, a cidade da Beira.
Botou palavra alanzoada que se intentou fazer chegar à compreensão dos ouvintes negros através dos serviços de um intérprete.

Ordenadas as coisas com esta boa concertação, aconteceu que o desígnio se veio a frustrar, por via de o discurso já correr a meio sem que o intérprete se prestasse à abertura da sua plurilingue boca.
Abespinhado, o mestre da cerimónia, de voz em grita, perguntou-lhe por que não traduzia ele a dissertação, ao que o intérprete, com a serenidade que a razão confere, respondeu: “Não traduzi o discurso porque o Senhor Presidente só falou. Ainda não disse nada”.

Se este aranzel convenceu o leitor (se leitor houver!) de que os Direitos Humanos não são uma conquista da “Civilização” (dita nossa), mas uma tomadia da Humanidade, desde o fundo dos Tempos, o falejador assume ter dito alguma coisa susceptível de ser traduzida pelo intérprete negro.

Se, ao invés, não convenceu, então que “meta a viola no saco”, porque apenas falou ao vento que passou, como, em seu tempo, fez o Carmona.

Perdeu tempo e fez perder.

Valério Bexiga

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