A importância das redes de cooperação judiciária europeia em matéria penal – qual o papel do advogado?

Tornou-se quase um lugar comum dizer que vivemos num espaço sem fronteiras, na era da globalização, das novas tecnologias e da internet. A forma quase trivial como falamos destes temas faz com que os mesmos soem como “verdades adquiridas”, porventura de menor importância. A realidade demonstra, porém, que o seu impacto na nossa vida foi quase copernicano.

Viajamos no Espaço Schengen sem qualquer barreira. Compramos o nosso bilhete de avião na internet, fazemos o check-in online, embarcamos e saímos no nosso destino sem qualquer interferência das autoridades estatais. Que cidadão português aceitaria hoje, sem se mostrar indignado, ter de esperar em intermináveis filas no controlo de imigração espanhol, ou ao controlo alfandegário das suas bagagens? Esta liberdade tornou-se um dado adquirido, de tal forma que às vezes é subvalorizado.

O maravilhoso mundo da livre circulação, sobretudo na União Europeia, tornou tudo isto possível e adquirido. Multiplicaram-se os programas Erasmus, a circulação de trabalhadores e prestadores de serviços, as viagens low cost que proporcionam agradáveis short stays nas capitais ou localidades de veraneio ou desportos de inverno europeus. A situação portuguesa é ainda mais particular pois, além da União Europeia, as relações estreitas com os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa facilitam, também quanto a estes, a circulação de pessoas, de bens, de serviços, o negócio internacional. A tudo isto acrescendo uma tradição secular de intercâmbio cultural e negocial, bem como de emigração que nos habituou ao contacto com o estrangeiro.

Que relevância jurídica tem a globalização no direito penal? E qual o papel do advogado neste mundo globalizado?

Pensamos que a relevância do fenómeno  da globalização e a reacção social e institucional ao mesmo, do ponto de vista penal e das redes de cooperação judiciária, apenas podem ser compreendidas adoptando uma abordagem cubista: têm de ser vistas em três dimensões diferentes, quer do ponto de vista dos protagonistas, quer do seu aparecimento temporal.

A primeira dimensão é a da mobilidade dos protagonistas do facto penal. Facto notório – para utilizar o jargão a que estamos habituados – é o de que o maravilhoso mundo da livre circulação não é apenas apanágio dos cidadãos cumpridores da lei. Aqueles que vivem do crime usufruem também desse privilégio de mobilidade. E os próprios cidadãos habitualmente cumpridores da lei, ao usufruírem da mobilidade que lhes é proporcionada, facilmente – até por desconhecimento – podem cair nas malhas do direito penal de um outro país. Veja-se o exemplo de um cidadão alemão que transporte para Portugal um “spray-pimenta”: a sua posse sem licença especial para o efeito é perfeitamente legítima na República Federal da Alemanha, enquanto que em Portugal, sem a licença necessária, configura crime de porte de arma proibida.

Ou seja, a liberdade de circulação levou ao aumento exponencial do número de situações jurídico-penais com relevância transnacional. Sejam crimes, por natureza, transnacionais – como os fenómenos de cibercriminalidade, de que é exemplo o phishing, ou o tráfico internacional de estupefacientes. Sejam crimes que eram tradicionalmente “nacionais” – ou seja, praticados em Portugal e maioritariamente por portugueses – e que passaram a ser praticados cada vez mais por cidadãos estrangeiros, quer aqui residentes, quer deslocando-se aqui apenas com o intuito de praticar tais condutas.

Esta primeira dimensão das redes de cooperação não é, evidentemente, judiciária. Mas é este o primeiro fenómeno a surgir. São os cidadãos que criam redes de mobilidade, de amizade, de intercâmbio científico, laboral, e, também, redes dedicadas à prática de ilícitos criminais. Este fenómeno surge em meados do século XX e vai crescendo cada vez mais, sendo potenciado na Uni\ao Europeia dos anos 90 com o estabelecimento do Espaço Schengen. Poderá dizer-se que, actualmente, esta primeira dimensão está em velocidade de cruzeiro – plenamente implementada e funcionando quase sem barreiras.

O seu surgimento não foi acompanhado pari passu, de uma forma efectiva, pela segunda dimensão: i.e., pelo estabelecimento de redes de cooperação judiciária a nível europeu que permitissem combater e minimizar a expansão territorial e o desenvolvimento tecnológico da criminalidade gerada pela globalização e, na Europa, pelo espaço de livre circulação.

A segunda dimensão surge como reacção das autoridades estaduais ao desenvolvimento da primeira. No seu início, as Comunidades Europeias e o direito penal aparentavam ser realidades totalmente antinómicas, pois o  ius puniendi é, se não a mais marcante, pelo menos uma das mais marcantes qualidades da soberania nacional. A construção europeia não incorporava o direito penal. Porém, dado o desenvolvimento da primeira dimensão, os Estados tinham consciência de que o ius puniendi não podia mais ser exercido numa ilha penal e, logo desde os anos 70, encetaram cooperação internacional a este nível. Tal cooperação foi-se desenvolvendo e, no presente, ao abrigo do Tratado de Lisboa, estão consagradas várias redes de cooperação judiciária e policial penal.

Temos, por um lado, a Rede Judiciária Europeia, que é uma rede de pontos de contacto nacionais facilitadores da cooperação entre actores judiciários e está em funcionamento desde 1998, podendo ser utilizada quer para transmissão de informações, quer para auxiliar as autoridades facilitando contactos nos pedidos de cooperação internacional.

A nível policial foi estabelecida e desenvolvida a Europol. Ao abrigo do Tratado de Lisboa, a Europol passa a poder assumir competências operacionais, muito embora em articulação e com o acordo das autoridades dos EM cujo território seja afetado, estando excluída a aplicação de medidas coercivas por parte dos agentes da Europol. Não obstante, esta possibilidade representa um alargamento claro do quadro de atuação da Europol, que a até à data tem funcionado como mecanismo de centralização, tratamento e transmissão de informação. O Tratado prevê ainda a possibilidade do estabelecimento de medidas de cooperação operacional entre autoridades policiais dos EM e, inclusivamente, a possibilidade de o Conselho estabelecer as condições e limites de atuação das autoridades policiais e judiciárias dos EM no território de outros EM, em articulação com as autoridades desse Estado – atuação essa que poderá ser levada a cabo, por exemplo, por meio das joint investigation teams, ou através de vigilâncias ou perseguições transfronteiriças, ou até ações encobertas transfronteiriças.

Relativamente a outra rede de cooperação, a Eurojust, estabelecida com o Tratado de Nice, é no Tratado de Lisboa que é dado o passo no sentido de uma maior operacionalidade. A Eurojust é uma unidade de cooperação cuja finalidade é o apoio e reforço da coordenação e cooperação entre as autoridades nacionais com competência em matéria de investigação e exercício da ação penal em matéria de criminalidade grave que afete dois ou mais EM, ou que exija o exercício da ação penal em bases comuns, com base nas operações conduzidas e nas informações transmitidas pelas autoridades nacionais e pela Europol. As principais inovações do Tratado de Lisboa relativamente à Eurojust são o alargamento das suas competências à criminalidade “que exija o exercício de uma ação penal em bases comuns”, onde poderão aqui incluir-se a cibercriminalidade ou os crimes contra os interesses financeiros da UE. A consagração expressa da articulação entre a Eurojust, a Europol e as autoridades nacionais parece também abrir caminho a uma forma mais próxima e operacional de cooperação. O Tratado prevê ainda uma inovação, conferindo à Eurojust a possibilidade de abrir investigações criminais (com particular interesse no que se refere às infrações lesivas dos interesses financeiros da UE), bem como de coordenação de investigações. Finalmente, o TFUE abre caminho ao estabelecimento de um mecanismo de resolução de conflitos de jurisdição no seio da Eurojust.

Mas a maior invocação do Tratado de Lisboa é a – há muito discutida –  inclusão da previsão da possibilidade de criação de uma Procuradoria Europeia (que poderá, ou não, ter por base a Eurojust). As suas competências serão: investigar, processar e levar a julgamento, eventualmente em articulação com a Europol, os autores e os cúmplices das infrações lesivas dos interesses financeiros da União. A ação penal será exercida perante os tribunais nacionais. Além das infrações, o Regulamento de criação da Procuradoria Europeia definirá o seu estatuto, as condições em que exerce funções, as regras processuais aplicáveis no exercício da sua atividade, regras sobre a admissibilidade da prova e, ainda, regras relativas à fiscalização jurisdicional dos atos processuais por si levados a cabo. A aprovação de tais Regulamentos constituirá a primeira definição de direito processual penal autónomo da UE.

A criação de uma Procuradoria Europeia – que é uma realidade: espera-se a apresentação de uma proposta no Verão deste ano! – coloca um vasto leque de problemas. Por um lado, questões relativas à coordenação e compatibilização da sua atividade com a Eurojust e a Europol, em particular se a Procuradoria for estabelecida por meio de cooperação reforçada. Por outro lado, pelas suas implicações ao nível do direito processual penal (e, reflexamente, do direito penal material, pois a sua criação só fará sentido conjuntamente com a criação de tipos penais europeus) coloca problemas de cariz estrutural, tais como a utilização conjugada de várias ordens jurídicas nacionais concomitantemente, pela Procuradoria Europeia, criando, quer de forma não intencional, quer até abusivamente, desequilíbrios processuais que bulirão com o equilíbrio constitucionalmente imposto entre obrigação de punição de crimes e garantia dos direitos e liberdades individuais, construído no quadro limitado do processo nacional. Além do mais, a criação da Procuradoria Europeia agrava o de si já grave desequilíbrio criado entre acusação e defesa, uma vez que, do lado desta, não existe (nem se antevê) instituição semelhante.

A segunda dimensão – embora não esteja ainda em velocidade de cruzeiro – tem, neste momento, as bases jurídicas para o estabelecimento de redes de cooperação tão eficazes quanto possível para fazer face à primeira dimensão. Só que este desenvolvimento e esta operacionalização da segunda dimensão levanta problemas quanto à terceira dimensão – a que aparece mais tardiamente e é, neste momento, a mais deficitária, criando graves desequilíbrios na igualdade de armas entre acusação e defesa.

A terceira dimensão é a da necessidade de defesa dos cidadãos face às intromissões nos seus direitos resultantes, já não da acção do Estado onde residem ou de onde são nacionais, mas sim da acção concertada de vários Estados, suportada pelas redes de cooperação referidas e, eventualmente, conjugada com a actuação de autoridades de judiciárias e policiais supranacionais. A consciencialização para esta dimensão começa a surgir, essencialmente, no início deste milénio. Consciencialização, mas não realização. Como sabemos, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia aprovada em 2000 apenas uma década mais tarde passa a ter vinculatividade jurídica. E durante esta década, apesar dos esforços nesse sentido, o máximo que foi conseguido foi o reconhecimento de que a necessária aprovação de instrumentos de defesa efectiva dos cidadãos visados nos processos penais, será feita numa abordagem step-by-step. Só em 2010 (!) foi aprovado o primeiro instrumento jurídico consagrando direitos das pessoas visadas nos processos penais (direito à interpretação e tradução). Neste momento está em acesa discussão um instrumento fundamental que regulará o direito mínimos dos cidadãos da União Europeia ao acesso à assistência por advogado. Esta terceira dimensão está, pois, totalmente  desfasada e atrasada relativamente à primeira e segunda dimensões: a Europa dos criminosos tornou-se a Europa dos polícias e está em via de tornar-se a Europa dos magistrados, mas ainda muito demorará a tornar-se a Europa dos cidadãos, onde também os visados nos processos penais tenham direito a uma defesa efectiva.

No presente há um inaceitável desequilíbrio entre a posição das autoridades de prossecução penal e os indivíduos visados. Basta ver que um procurador espanhol que queira ouvir um arguido em Portugal poderá solicitar o apoio da Eurojust ou da Rede Judiciária Europeia para o efeito, realizar uma vídeo-conferência, deslocar-se ao nosso pais para o ouvir ou até, alicerçado no princípio do reconhecimento mútuo, emitir um Mandado de Detenção Europeu para que este seja detido e transportado para Espanha para efeitos de interrogatório. Não podemos, pois, deixar de perguntar: e o arguido? O arguido terá advogado? Em Portugal? E em Espanha? E poderá consultar o processo de cooperação em Portugal? E o processo penal em Espanha? Terá alguma palavra a dizer quanto às medidas de investigação que o visam? Diremos que certamente terá de o ter. Mas infelizmente, a realidade não é esta.

Surge, assim, nesta terceira dimensão das redes de cooperação surge o papel fundamental do advogado. Também o advogado tem de deixar a ilha penal e adquirir conhecimentos linguísticos que permitam trabalhar em rede, conhecimentos jurídicos de direito europeu e conhecimentos mínimos da cultura jurídica dos outros Estados e, sobretudo, organizar-se em redes de cooperação. Só assim poderá o advogado, de imediato, avaliar exaustivamente a situação jurídica do cidadão em causa e patrocinar de forma efectiva os seus interesses, tendo em conta as implicações jurídicas decorrentes da transnacionalidade da conduta criminal que lhe é imputada e da cooperação entre as autoridades de prossecução. Os advogados têm, pois, de organizar-se, também eles, em redes de cooperação e, nesse âmbito, lutar para que sejam consagradas soluções jurídicas internamente e a nível da União Europeia que garantam que os cidadãos não verão os seus direitos diminuídos face à actuação das redes de cooperação judiciária e da prossecução transnacional. Sobretudo o direito fundamental de acesso ao patrocínio judiciário, que deve ser garantido a qualquer cidadão independentemente da sua condição económica – e, agora, do país ou países envolvidos no processo contra si movido.

E essas redes de advogados têm, também elas, de ter o devido apoio legislativo dos governos estaduais e dos órgãos legislativos e executivos da União Europeia. Pois, sem elas, não é possível estabelecer a igualdade de armas. E porque a intervenção dos advogados dos vários Estados envolvidos contribui para melhorar o andamento do processo e a realização da justiça penal – o que já foi, aliás, comprovado em estudos empíricos, nos quais se demonstrou que o contacto entre Estados permite inúmeras vezes resolver de forma expedita e mais satisfatória os processos de cooperação. Exemplo flagrante é o da já mencionada proposta Directiva sobre o direito de acesso a um advogado em processos penais. Esta propõe a possibilidade de um cidadão detido com base num Mandado de Detenção Europeu ter direito a beneficiar da assistência de advogado não só no Estados de execução, mas também no de emissão. Sem esta dificilmente pode o advogado do Estado de execução defender de forma efectiva a posição do seu cliente. A Comissão Europeia e o Parlamento Europeu são favoráveis à consagração deste direito mínimo, mas existem Estados-Membros que ao mesmo se opõem frontalmente. Este tipo de posição é inaceitável e impede o desenvolvimento da terceira dimensão, da Europa dos cidadãos.

A globalização do fenómeno penal e importância das redes de cooperação penal têm, pois, de ser vistas desde estas três dimensões que necessitam de ser conjugadas e equilibradas, sendo o papel do advogado essencial neste processo, de forma a Garantir níveis de criminalidade aceitáveis, mas salvaguardando os direitos dos cidadãos e os princípios do Estado de direito.

Vânia Costa Ramos

Sem comentários: