Advocacia, ordem e acesso ao direito simples constatações de facto e algumas reflexões

Simples constatações de facto e algumas reflexões

O sistema de acesso ao direito é essencial para a boa administração da justiça e um elemento imprescindível a promoção da igualdade entre os cidadãos.

O sistema de acesso ao direito não é condição de sobrevivência da advocacia e, sobretudo, não pode ser causa da sua degradação.

O âmbito e o alcance do apoio judiciário concedido – que, em regra, não abrange outros processos punitivos para além dos processos penal e contra ordenacional, nem sequer em muitos casos a justiça e os procedimentos de natureza administrativa - tem sido manifestamente restritivo.

E, pior, o regime tem-se demonstrado, na prática, insuficiente para suprir as reais necessidades do cidadão, a tal ponto que se diz - com razão - que à protecção jurídica, à consulta e ao apoio judiciário só terão, quanto muito, direito os indigentes, e não os também os realmente necessitados.

O que significa que há muitos cidadãos privados de informação jurídica básica e, pior, manietados no que toca ao efectivo exercício, e à tutela mínima, dos seus direitos fundamentais e, por conseguinte, impossibilitados de conhecer e fazer valer os seus direitos.

A consulta jurídica quase desapareceu e o défice de informação ao cidadão tem sido, para além de recorrente, uma das grandes pechas do sistema e, infeliz e negligentemente, tem vindo mesmo a agravar-se com o encerramento de muitos Gabinetes de Consulta Jurídica.

Não se generalizaram serviços de acolhimento nos tribunais e serviços públicos, sendo excepcionais, e da iniciativa da Ordem, algumas experiências isoladas e não repetidas ou replicáveis no sentido de melhor cobrir o espectro das necessidades de consulta e apoio jurídico.

Há pois que discutir seriamente temas fulcrais
Advocacia Pública
Princípio da livre escolha do cidadão
Intervenção individual ou societária
Critérios de selecção e nomeação
Nomeação ad hoc para casos
Lotes curtos, medianos ou elevados
Preenchimento sucessivo
Despesas
Tempos de deslocação
Remunerações
Princípio da unidade do defensor
Princípio da pluralidade de defensores
Conflitos de interesses
Prémio para o ganho de causa - resultado
Intervenção de advogados
Intervenção de advogados-estagiários
Válvulas de escape
Restituição das quantias
Uniformização de critérios locais

Permitam-me ainda transmitir-vos algumas reflexões sobre o Advogado – que ainda é o último profissional liberal, livre e independente. É, mas pode deixar de o ser…

São tão necessários advogados livres, independentes e não subordinados, como juízes isentos, imparciais, inamovíveis e independentes dos poderes. Por isso que, aqui e agora, e sempre, defendamos a independência absoluta e a máxima autonomia e um paradigma de cordialidade e de respeito para e entre advogados e magistrados.

Somos apenas mais uma profissão, ainda que liberal e talvez a última? Profissionais do foro ou funcionários da área da justiça, sem mais? Meros técnicos especializados? A resposta é obviamente negativa. “O talento não é qualidade suficiente para profissão tão íntima do exercício da justiça. A independência e o desinteresse constituem virtudes essenciais e particularmente meritórias de um Advogado”.

Essência da advocacia é, pois, a liberdade e a independência, o seu livre exercício, a diferença entre quem depende de terceiros e aquele que só depende de si próprio e, com regras e sem medo nem temores, só se subjuga aos interesses que lhe compete defender, sem deles ficar refém. Não toleraremos, pois, quaisquer tentativas de perseguição, de funcionalização ou de instrumentalização do advogado, assim como estaremos sempre na primeira linha da defesa da dignidade, da independência e da autonomia das magistraturas.

A liberdade e a independência em relação a terceiros é conditio sine qua non da advocacia, sem a qual não há justiça justa e advogado digno de tal nome, isto é, “o Advogado... defensor dos direitos, liberdades e garantias individuais contra qualquer forma de arbítrio ou abuso de poder”. Se é certo que “…não haverá boa justiça sem boa advocacia…”, também “…é exacto dizer não haver uma grande advocacia sem uma grande magistratura”.

São, por igual, necessários todos os profissionais do foro, sem o que não há justiça digna desse nome. E o prestígio da justiça exige um entendimento urgente e um diálogo aberto, educado e profícuo. O prestígio da justiça, e dos seus profissionais, implica serenidade na acção, lealdade nos procedimentos, elevação de pensamento e destacado grau de cultura que, por sua vez, pressupõem abertura e diálogo, compreensão e humanidade, tolerância e respeito, sobriedade no verbo, delicadeza no comportamento, humildade intelectual e compreensão das diferenças, das causas e das consequências dos comportamentos humanos. E todas estas características são essenciais aos profissionais do foro. A todos.

Todos somos, portanto, imprescindíveis à administração da justiça: “o professor ensinando o direito, o causídico diligenciando fazê-lo aplicar na sua melhor interpretação, e o magistrado procedendo à sua aplicação, representam três momentos distintos da mesma excelsa obra de administrar a justiça, aperfeiçoando à satisfação das necessidades sociais as normas reguladoras da vida em comunidade, garantindo a esta a segurança e estabilidade inseparáveis de todo o progresso”.

A advocacia define-se, pois, pelas seguintes expressões: profissão liberal, independência absoluta, múnus de interesse público, actividade essencial na administração da justiça, função social de representação, garantia do exercício da cidadania, da igualdade e da construção da solidariedade activa, salvaguarda da dignidade da pessoa, da vida e da actividade humana e baluarte da defesa dos direitos humanos fundamentais.

Não é hoje pensável o acesso ao direito, a consulta jurídica e o apoio judiciário, bem como a condução do processo, de qualquer processo, ou mesmo simples procedimento, ainda que no âmbito da desjudicialização, sem a assistência de um profissional do foro, de um jurista, enfim, de um advogado.

Porque o “Advogado é, em primeiro lugar, um intérprete e um mediador privilegiado da lei, num tempo de crescente complexidade, em que o princípio de que a ignorância da lei não aproveita a ninguém se apoia numa realidade totalmente ultrapassada e tem a carga simbólica das ficções. Nas sociedades de hoje, o cidadão comum, ainda que detentor de importantes saberes é, em geral, juridicamente iletrado”.

Mais “o advogado é, naturalmente, um jurista, um homem de leis, alguém que contribui activamente para a Administração da Justiça. Mas o advogado é muitas outras coisas. É confidente, é conselheiro, é quase um confessor. É alguém a quem um cidadão aflito e preocupado pensa logo em recorrer. É alguém a quem uma pessoa assustada, desprotegida, vulnerável, não hesita em bater à porta. É alguém a quem uma pessoa confia os seus sentimentos, delega as suas preocupações, deposita muitos dos seus interesses”. E por isso pugnaremos pela obrigatoriedade de advogado nos meios alternativos.

O advogado só será útil à Justiça se puder agir livre e independentemente; se puder continuar a ser livre e independente, apesar de todas as ameaças à sua matriz fundamental, a menor das quais não é certamente a tentativa estadual de intervenção abusiva nas Ordens, ou o incremento da crispação e da perseguição movida por magistrados por invocados delitos de expressão no exercício do patrocínio, como não o é a tentativa de intromissão crescente na procura da quebra do segredo profissional.

Mas as ameaças ao advogado livre não vêm apenas do Estado ou dos poderes públicos. Também as Sociedades de Advogados, que deviam ser um espaço de (maior) liberdade e de (crescente) igualdade, por vezes não o são.

O advogado, defensor de pobres e desvalidos, da vítima inocente que demandava justiça, capaz de arrastar a barra do Tribunal com o fulgor da sua retórica e da sua razão como numa revolta da Bounty, essa imagem romântica que perpassou o imaginário do século XX não faz mais sentido hoje”. Mas também é certo que ainda agora “…o advogado é uma espécie de Dom Quixote dos tempos modernos. Hoje, o advogado tem que dar garantias aos cidadãos que existe, resiste, persiste e insiste. Que é alguém capaz de lutar ou ir à procura de uma causa perdida. (…) Os instrumentos do advogado são a palavra e a racionalidade. O advogado tem de desconstruir os sistemas dominantes, tem de saber como os interpretar e reorientar. O advogado tem de fazer das leis cegas, leis que possam servir para lembrar que o seu cliente ou o cidadão são pessoas”. E, já agora, para que conste, também os advogados são pessoas.

 Há que dizer que “…as grandes sociedades de advogados, se podem ter numerosos sócios, contam quase sempre com um muito superior número de jovens advogados-funcionários que trabalham de um modo geral em condições profissionais adversas” E uma das principais ameaças modernas à advocacia livre e independente é a sua funcionalização pela via da hierarquização, da subordinação e da massificação.

O número de advogados aumentou exponencialmente nos últimos 20 anos, fruto do aumento da litigiosidade, da proliferação de universidades públicas, privadas e do sector cooperativo e do carácter residual da profissão. Não tendo aumentado, em proporção, o número de juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários judiciais, percebe-se também aqui uma das razões da crise da justiça O próprio exercício da advocacia mudou muito nas últimas décadas, desde logo com o aumento sempre crescente, embora ainda lento, do número de sociedades de advogados e do número crescente de advogados inseridos em sociedades quer como sócios quer sobretudo como associados ou colaboradores.

No mundo em geral, abandonado, ou menosprezado, o paradigma individualista do exercício das profissões liberais, “…passámos ao trabalho de equipa, em grupos pluridisciplinares. Também os advogados têm seguido o mesmo caminho. Contudo, se as condições do exercício da profissão sofrem alterações, o espírito de independência, de autonomia, e de responsabilização, mantêm-se como valores indissociáveis da ética e da deontologia profissional”.

As sociedades de advogados, apesar da sua curta história em Portugal, mudaram muito também; passaram rapidamente, do que foram no início, de sociedades de pessoas para, o que são maioritariamente agora, sociedades de capital. Não olvidamos que se estabelece que “todos os sócios integram obrigatoriamente a sociedade com participações de indústria e todos, alguns ou algum deles, segundo o que for convencionado, também com participações de capital”.

Assim é na letra da lei. Mas a prática leva-nos a concluir que, sobretudo com o movimento da internacionalização, o factor capital é sobrevalorizado em relação às participações de indústria que são subvalorizadas.

O relacionamento entre advogados dentro das sociedades também tem vindo a sofrer várias alterações, quer pela via da hierarquização excessiva, quer pela via da funcionalização abusiva, do exercício da profissão. É um facto que a lei estabelece que “as sociedades de advogados são sociedades civis em que dois ou mais advogados acordam no exercício em comum da profissão de advogado, a fim de repartirem entre si os respectivos lucros”.

Ora, o exercício em comum exige respeito recíproco e condições mínimas de dignidade, de igualdade e de independência. Independentemente de tudo quanto tem que mudar por força da mudança do mundo.

Pode perguntar-se se “…um gabinete de advogado não será um incomparável campo de observação onde se vê viver e palpitar a nu a alma humana”  e se “os esforços da intervenção do jurista na vida pública, social, empresarial e familiar serão de futuro mais evidentes”, sobretudo se estruturados em equipas multidisciplinares. A resposta não deixará de ser positiva, face à crescente juridificação do mundo.

Não temos dúvidas de que o futuro passará, sobretudo, pelas sociedades de advogados, mas também temos a certeza que nunca se extinguirá, e será mesmo essencial, o advogado em prática individual. Até porque se “…a juridificação do bem estar social abriu o caminho para novos campos de litigação nos domínios laboral, civil, administrativo, de segurança social, o que, nuns países mais do que noutros, veio traduzir-se no aumento exponencial da procura judiciária e na consequente exploração da litigiosidade”, a verdade é que, na maior parte dos casos, e sobretudo nos casos que contam, a relação pessoal advogado/cliente ou constituinte é inultrapassável.

Assim, se é verdade que se verifica um ocaso do paradigma liberal ou do advogado em prática individual, também menos certo não é que continua a haver espaço para o advogado isolado. E o simples facto de o advogado exercer integrado em sociedade de advogados não lhe retira a sua especial independência, qualidade e responsabilidade. Agora o que se não pode admitir é que a sociedade de advogados se torne um instrumento de pressão, de opressão ou de exploração. E, muito menos, que a institucionalização da profissão possa colocar em segundo plano o cidadão, a pessoa, face aos interesses públicos ou corporativos, institucionais ou empresariais, económicos ou financeiros.

É que a sociedade de advogados deverá ser um espaço de liberdade e de igualdade. Dir-se-á mesmo que tem que ser um espaço de maior liberdade e de crescente igualdade, sob pena de desvirtuar a sua função e de descaracterizar a advocacia, tornando-a mera actividade de prestação de serviços.

Mas a terapêutica não passa pela afronta nem pela diabolização das grandes sociedades, mas sim pela regulamentação de uma deontologia específica, de um código de boas condutas que se mostra urgente, pela intervenção pedagógica e, se estas não resultarem, pela censura nos órgãos jurisdicionais próprios e nunca foi uma demanda pública e classista.

E aí a Ordem dos Advogados – tem que ser um exemplo de cidadania, serviço, rigor, profissionalismo e exigência (custe o que custar, doa a quem doer).

E por isso se diz que “a Ordem dos Advogados é tão antiga quanto a magistratura, tão nobre quanto a virtude, tão necessária quanto a Justiça”, que “o Collegium de Advogados … constituiu, assim, um factor de garantia científica e prestígio pessoal dos próprios advogados” e que, “no Advogado, a rectidão de consciência é mil vezes mais importante do que o tesouro dos conhecimentos. Primeiro, ser bom; depois, ser firme; por último, ser prudente; a ilustração vem em quarto lugar; a perícia, no fim de tudo”. “O Advogado serve a justiça mais do que o direito, e o direito mais do que a lei (…) O Advogado informa, aconselha, concilia, serve de mediador entre os cidadãos e entre estes e os tribunais. É, por vocação, um agente da convivência cívica e da paz social (…) Ser advogado é lutar contra o arbítrio e as iniquidades, pugnar por uma sociedade mais justa e convivente. (…) A advocacia é um humanismo e uma magistratura cívica”.

O fundador da Ordem dos Advogados, o Prof. Doutor Manuel Rodrigues, foi muito claro ao afirmar que  “…a Ordem dos Advogados devia existir dada a importância das suas funções: cultura das ciências sociais e do direito, este na sua técnica e aplicação prática; moralização do exercício profissional; e assistência social aos agremiados e suas famílias”. Fosse assim só e pareceria, erradamente é certo, que a Ordem estaria virada para si mesma ou circunscrita à advocacia e aos advogados. Depressa porém se virou para o exterior a instituição, que tem uma especial natureza e função social. Desde logo a dignificação da advocacia. Mas também a defesa da cidadania.

Foram, logo, acrescentados como fins da Ordem “…contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica, e aperfeiçoamento da legislação, e, em especial, da concernente às instituições judiciárias e forenses; e auxiliar a administração da justiça”. Mas para além da administração da justiça fora de portas, a Ordem tem como função primordial exercer, com exclusividade, a jurisdição disciplinar sobre todos os seus membros.  É que “…a prática de advocacia, em termos de infundir confiança e não ser fonte de perturbações, postula um conjunto de qualidades – congénitas ou adquiridas – difíceis de ver concentradas num mesmo individuo, especialmente se não houver uma regra forte a discipliná-lo”.

Não é o facto de existir uma Ordem interventiva, uma regra forte e uma jurisdição disciplinar efectiva que diminui a liberdade e a independência dos advogados. Bem pelo contrário. O grau de exigência e de rigor que os advogados impuserem a si mesmos terá certamente como contrapartida o grau de credibilidade e de confiança que a sociedade neles deposite. Maior liberdade, maior a responsabilidade. E maior responsabilidade significará também uma maior autoridade.

Por isso já se disse que “... uma verdadeira prova de probidade(...) que imprimirá à assistência do advogado um cunho de nobreza e de sinceridade que tornam o mandato judicial em contrato sui generis e a advocacia inconfundível com qualquer outra profissão comercial ou industrial, atinge-se primordialmente por uma esclarecida jurisdição disciplinar fortemente organizada e equilibradamente exercida”.

Mas a Ordem dos Advogados não deve ser apenas um factor de exigência e de rigor para com os seus membros. Deve ser sim, também, ela própria, um exemplo de exigência e de rigor no exercício das suas competências próprias; mas, mais do que isso, deve ser também um exemplo de profissionalismo, de serviço e de cidadania. Exemplo que tem sido sempre dado de forma gratuita e empenhada.

Assegurada, preventiva e repressivamente, a qualidade do exercício da advocacia é necessário fazer mais, muito mais. E, por isso mesmo, vamos aqui lançar três desafios para o século XXI: instituir a (real e efectiva) possibilidade de consulta jurídica aos cidadãos; assegurar a (efectiva e digna) defesa oficiosa nos Tribunais e perante os Poderes e a Administração e possibilitar a (permanente e eficaz) assistência jurídica aos privados de liberdade nas Prisões e nos Centros Educativos.

É imperativo de cidadania. E esse imperativo de cidadania cumprir-se-á na efectivação do acesso ao direito, com foros de igualdade para todos, sem excepção, ainda que por intermédio de estruturas sugeridas ou instituídas pela própria Ordem dos Advogados.

Nenhum Estado, por mais democrático e respeitador que se reclame, deixou de discriminar, perseguir e oprimir e, sobretudo, de ter em si, e de pretender ter cada vez mais para si, tais potencialidades discriminatórias, persecutórias e opressoras. E isso, bem como a arbitrariedade de procedimentos e a desigualdade de tratamento, já para não falar do erro, é tanto mais evidente naqueles que são objecto de procedimentos impositivos ou primitivos e que estão privados da sua liberdade.

Batalhemos, pois, pela igualdade de direitos, pela solidariedade e fraternidade, pela dignidade da pessoa humana, o que obviamente trará consequências ao nível social, económico, político e, também, ao nível do acesso ao direito. E para a promoção da igualdade é imprescindível o reconhecimento do primado das pessoas, de cada pessoa individualmente considerada, sobre as estruturas, e sobre a colectividade; é necessário o culto da liberdade com responsabilidade e o apelo à consciência colectiva de reconhecimento de igual dignidade de todas as pessoas, em todas as circunstâncias.

Não foi, infelizmente, o que fez o governo na regulamentação do apoio judiciário. Não é aceitável confundir despesas a suportar com a compensação do trabalho efectuado ou dos serviços prestados. Ofendem-se os princípios da igualdade dos cidadãos e do efectivo acesso ao direito em caso de insuficiência económica. A injustiça e a iniquidade da nova regulamentação são tanto maiores quanto os valores de compensação contemplados para os advogados são irrisórios e inadequados à nobre finalidade do apoio judiciário, não permitem uma informação jurídica e um apoio judiciário eficazes, designadamente uma defesa digna ou um patrocínio efectivo, e ofendem a dignidade da profissão.

Não obstante a defesa oficiosa não prescinde da noção do dever individual, da responsabilidade colectiva e da praxis solidária do advogado. Temos todos que pensar no ocaso do paradigma do advogado individual, nos riscos da advocacia pública e na possibilidade de uma “terceira via”.
Há, já se disse, “…uma meditada hostilidade contra a advocacia; nesta, considerada a mais típica das profissões ditas liberais, alguns acreditaram discernir uma espécie de resíduo fóssil do individualismo declinante… e que, em breve, também deveria ser totalmente eliminada pela transformação, que afirmam inevitável, das profissões liberais em empregos públicos”.

O acesso ao direito está constitucionalmente garantido. Tal como está assegurado também o patrocínio forense. E, por isso, “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da Justiça”. O patrocínio judiciário, ou a defesa judicial, é o terreno, por excelência, da actuação do advogado; isto é, a representação da parte ou do sujeito processual, na arena judiciária, precisamente por um profissional do foro, quer seja ele advogado, advogado estagiário ou, em certos casos, solicitador. O mandato judicial, a representação e assistência por advogado, bem como o patrocínio judiciário encontram-se instituídos no interesse da administração da justiça aos cidadãos.

O Advogado carrega nos ombros o fardo das expectativas do cliente para que lhe seja feita justiça, defendendo-lhe a fazenda, “honra”, liberdade e, por vezes a própria vida” e a “…a actividade do advogado reveste essencialmente uma destas três espécies: patrocínio forense, mandato não forense e consulta jurídica”.

A representação por profissional do foro é, ou poderá ser, não só útil para a resolução extrajudicial dos conflitos ou para a mais rápida resolução do litígio, mas também para o aprofundamento da qualidade da justiça, finalidade que parece estar em desuso, tal é a febre da eficácia e a sanha da celeridade, que tudo o mais parece ficar esquecido.

O advogado é também imprescindível à boa condução e conclusão dos processos judiciais e extra judiciais. Para boa decisão da causa ou para a descoberta da verdade. De toda a verdade e não apenas da verdade fácil, superficial, oficial ou oficializada, formalmente declarada com chancela burocrática.

O paradigma do advogado individual em prática isolada, já o dissemos, está em crise. Mas a responsabilidade social da advocacia parte, em primeira linha, da noção e do exercício do dever individual e, só depois, da responsabilidade social e da acção colectiva. Por isso se diz que a advocacia é uma função de relevante interesse público. E um imperativo de cidadania.

Cabe ao advogado uma especial responsabilidade social na forma como exerce a sua função. Sem esquecer o permanente e escrupuloso cumprimento dos seus deveres individuais terá que pautar todo o seu comportamento pessoal e conduta profissional, no estrito respeito por critérios éticos exigentes e limites acima da média do comum cidadão. Não vamos tolerar a crescente impunidade na violação das regras do sigilo e da proibição de discussão pública dos casos pendentes, sem a devida autorização.

A Ordem dos Advogados tem especiais atribuições e competências que não pode descurar, designadamente em matéria de co-responsabilização na gestão do regime do acesso ao direito e aos tribunais. Mas também no controlo ético efectivo do exercício profissional. É imperativo de cidadania mas também uma decorrência da responsabilidade colectiva que nos cabe a todos enquanto profissão.

A praxis do advogado é objecto de apertada sindicância crítica por parte das instituições em geral e dos cidadãos em particular, e uma das maiores críticas que se vem fazendo ao concreto exercício da advocacia tem que ver com o actual estado do patrocínio oficioso e da defesa oficiosa em Portugal. As nomeações são aleatoriamente feitas sem que se tenha em conta a experiência profissional e a especial vocação ou a real competência dos advogados designados.

Ora, a crescente complexidade do edifício legislativo, as exigências das novas tecnologias, o aprofundamento e o alargamento das matérias previstas em cada ramo do direito, a proliferação de regimes especiais, de processos e de procedimentos, impõem a especialização. Mas as nomeações não têm em conta, sequer, a maior parte das vezes, as áreas de actuação preferenciais de cada advogado.

Ouvem-se vozes a clamar pela alteração urgente deste estado de coisas. Vozes outras clamam pela introdução da advocacia pública. Não basta proclamar que “o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos”. Há que resolver o drama do acesso ao direito. Haverá uma “terceira via”?

Há, pois. Designadamente desenvolvendo “acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção jurídica”. Repensar a acção do advogado e a vocação da Ordem dos Advogados; há que repensar o acesso ao direito, de modo a que, com espírito de serviço público, se cumpra a solidariedade exigível, sempre com a independência desejável, incompatível com qualquer publicização da advocacia.

Mas para que tal se possa concretizar não é necessária a advocacia pública, com todos os riscos que comporta, subserviência, rotina, ineficácia, desperdício, acomodação, temor, desmotivação, discriminação, arrogância, laxismo, etc., etc... tudo, enfim, o que de pior tem sido a experiência e o exemplo de quanto é, e não devia ser, o serviço público em Portugal!; mas sim uma “terceira via”, um novo advogado e uma nova advocacia, mais empenhada e mais solidária, mas sobretudo um novo sistema de acesso ao direito, mais organizado, igualitário, justo, eficaz e eficiente.

Não bastam a solidariedade e o espírito de serviço público para cumprir as especiais responsabilidades individuais e institucionais da profissão. É necessário repensar o acesso ao Direito.
A solidariedade e o espírito de serviço público sempre foram apanágio da profissão, mas não escamoteamos, nem podemos recusar, a nossa quota parte na responsabilidade pela crise da justiça e as especiais responsabilidades individuais e institucionais da profissão, designadamente no que respeita ao real apoio aos mais carentes e miseráveis e, por conseguinte, à garantia do acesso ao direito.

Quando se “constituem atribuições da Ordem dos Advogados” por um lado, “defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça” e, por outro, “assegurar o acesso ao direito” está-se a cometer uma especial responsabilidade social ao conjunto dos advogados, mas não só.

Têm os vários órgãos da Ordem, a saber o Conselho Geral, o Conselho Distrital e a Delegação especiais competências, o primeiro, na definição da posição da Ordem dos Advogados “no que se relacione com a defesa do Estado de Direito, dos direitos, liberdades e garantias e com a administração da justiça”, o segundo, para “nomear advogado ao interessado que lho solicite por não encontrar quem aceite voluntariamente o seu patrocínio” e, a terceira, se o segundo o não fizer, “promover a criação e instalação de gabinetes de consulta jurídica, bem como exercer as demais funções no âmbito do acesso ao direito”.

Para que a Lei seja efectivamente igual para todos, para que o Direito seja uma realidade a todos acessível e a Justiça seja justa, actual e pronta, e sirva os cidadãos com eficiência, as reformas são absolutamente necessárias, tanto as de carácter constitucional e legal, como institucional, orgânico e prático.

Mas a assistência do advogado não se pode limitar à intervenção em tribunal. Porque nem todos os problemas surgem no Tribunal ou são resolúveis no foro. Daí “…o acesso ao advogado integrar, afinal, o próprio princípio do acesso ao direito, na medida em que o recurso aos serviços de um advogado em que o litigante deposite confiança é condição da realização do seu direito a um julgamento justo. Do mesmo modo que o recurso à prestação de serviços de consulta jurídica por advogado é condição da realização do direito, à informação e à orientação jurídica”.

Ou seja, não sendo sua função primordial, “…é possível que o advogado se transforme, ele próprio, num mecanismo de resolução do litígio…”, até porque “…o advogado deve exercer também uma função de pacificação social. Aconselhando quando procurado, privilegiando procedimentos de conciliação e transacção, promovendo uma informação activa e exercendo pela sua própria conduta, uma pedagogia cívica”.

Porque é necessário então o advogado? E também o advogado fora do tribunal nos meios alternativos? Desde logo e “…primeiramente porque só ele separando o trigo do joio, conforme a locução popular, sabe extrair de um amontoado de elementos o que pode interessar ao tribunal [ou a quem decide], evitando assim que os magistrados [ou os decisores] malbaratem a sua actividade na destrinça entre o que vale e o que não presta; em segundo lugar, porque quem patrocina uma questão no pretório deve ter a cultura geral e profissional necessárias para expor com clareza e precisão convenientes a matéria de facto e saber enquadrá-la nas disposições legais reguladoras; em terceiro lugar porque uma tal exposição tem de ser feita não só com clarividência mas com serenidade e sem paixão”.

O difícil é compatibilizar interesses diversos, sempre desequilibrados, e, por vezes, contraditórios; daí que se diga que “há que encontrar um equilíbrio entre o individual e o colectivo, tal como entre os direitos e os deveres, a solidariedade e a assistência, sem o qual o cidadão se encontrará [fragilizado e] desresponsabilizado”.  É difícil, mas é também um imperativo de justiça. Pois que “por um lado, a justiça não se destina apenas a resolver os conflitos, o que já não seria pouco. A justiça tem uma missão muito mais importante e geral a de permitir que as liberdades sejam efectivas, que a democracia funcione, que se estabeleça a segurança essencial, que a ordem pública seja possível e faça sentido e que o mercado não se transforme numa selva”.

E, por isso, se diz que “o advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõe” e que “a honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais”. Não será demais registar, aqui, que nenhuma outra profissão judiciária exige tanto dos seus membros, é tão clara e abrangente na estatuição dos seus deveres e tão cuidadosa na sua fiscalização e controlo.

Uma advocacia independente assente no advogado livre é essencial, é mesmo imprescindível, mas não é suficiente. Porque nem sempre é possível ao advogado, a cada um dos advogados, que cabe exercer o mandato e assegurar a consulta, responder a todas as necessidades da sociedade. E nem sempre quando estes respondem individual e isoladamente a resposta é a mais adequada. Por isso é preciso uma Ordem que intervenha. Que intervenha criando, ou propondo a criação ao Estado, de gabinetes de consulta jurídica local e geograficamente bem enquadrados e dotados de meios humanos adequados e equipamentos mínimos; de serviços de acolhimento nos tribunais e serviços para judiciários e de gabinetes de consulta jurídica nos Estabelecimentos Prisionais e nos Centros Educativos.

Assim se assegurará um exercício empenhado de uma Cidadania informada como emanação dos deveres de solidariedade individual e dos deveres de participação e de intervenção na vida pública. E assim se sublinhará a importância da sensibilização para os direitos humanos, da formação inicial e contínua e da especialização.

Em síntese, “a advocacia é uma função nobre e humanista. Servir o direito e a justiça, apoiar os fracos e os oprimidos, defender a vida, a honra, a liberdade e os interesses legítimos dos cidadãos, e pugnar  por um mundo melhor”. E essa é, no fundo, em poucas palavras, a nossa responsabilidade social. “O processo de renovação da justiça é um desafio permanente das sociedades modernas, as quais se confrontam hoje com a globalização das trocas, das novas tecnologias e com a internacionalização das relações sociais do direito e, também, com a internacionalização do crime”. O que se espera do advogado, vimos já: acção digna e livre, autonomia técnica, isenção e responsabilidade, empenhamento na administração da justiça, honestidade e lealdade, probidade e rectidão, cortesia e sinceridade. Mas há que cultivar estas características. Elas não são estáticas e não se mantêm para sempre sem um esforço continuado.

A adequada, permanente e empenhada formação inicial e contínua, que “...obstará a que o advogado involuntariamente erre e induza em erro;... obtém-se por uma conveniente habilitação literária e jurídica, há muito fixada no mínimo de uma formatura em direito e, actualmente, de uma licenciatura [ou de um mestrado?] seguida da prestação de um estágio” ou exigirá algo mais? Por exemplo, a especialização.

Mas não só! É que “a formação contínua constitui um dever de todos os advogados, sendo da responsabilidade da Ordem dos Advogados a organização dos serviços de formação destinados a garantir uma constante actualização dos seus conhecimentos técnico-jurídicos, dos princípios deontológicos e dos pressupostos do exercício da actividade, incidindo predominantemente sobre temas suscitados pelo desenvolvimento das ciências jurídicas e dos avanços tecnológicos e pela evolução da sociedade civil”.

E se esta formação é essencial, a formação humana, a transmissão da experiência, a instilação da prudência, o ensino da deontologia e a sensibilização para os direitos humanos, mais do que fundamental, é imprescindível. Não pode, pois, deixar-se a formação inicial, sobretudo no capítulo da deontologia, mas também no que toca às práticas forenses, fora da Ordem dos Advogados e, sobretudo, ausente da experiência e órfã dos saberes acumulados dos Colegas mais velhos. É, se for assim, um erro crasso e um risco tremendo para o futuro.

Mas também não pode menosprezar-se a necessidade, diríamos mesmo a obrigatoriedade, da formação contínua. Porque a advocacia é uma necessidade social latente, premente e crescente, porque a sociedade não pára, o direito não estagna e a profissão tem que avançar, ou estiola, foi cometida à Ordem mais uma atribuição: a de prover serviços de formação contínua, para que a nossa acção individual e colectiva possa ser mais pronta e eficaz e responda mais adequadamente às necessidades e solicitações do indivíduo e da sociedade. Ganha a batalha da diversidade, vamos agora apostar na qualidade.

Só assim se garantirá o exercício livre, rigoroso e esclarecido da Advocacia como condição necessária, embora insuficiente, para a promoção da efectiva igualdade entre os cidadãos e para a protecção do indivíduo face às inércias e aos abusos do poder. Não só se exige a disponibilidade do Advogado mas também o cumprimento das responsabilidades especiais do Estado.

“O advogado «é o homem livre, na verdadeira acepção da palavra. Não pairam sobre ele senão as servidões voluntárias; nenhuma autoridade estranha paralisa a sua actividade individual; a ninguém deve contar das suas opiniões, das suas palavras ou dos seus actos; não tem outros senhores que não seja a lei. Daí, nos advogados, um orgulho natural, por vezes irreverente, e um sorridente desdém de tudo que seja oficial ou hierarquizado”.

O exercício digno da advocacia é condição necessária, primeiro, para a promoção da efectiva igualdade entre os cidadãos e, depois, para a protecção do indivíduo face à inércia e ao abuso dos poderes instituídos. Por isso se diz que o advogado tem que “…ser em cada causa, causa de justiça. Exercer, pelo combate pacífico e pelo exemplo, uma verdadeira magistratura moral e cívica. Defender o Estado de Direito, protestar contra as violações dos direitos humanos e combater as arbitrariedades, é um dever indeclinável do advogado…”. A advocacia é uma luta permanente contra os arbítrios, os incumprimentos e as iniquidades. “São os advogados quem, ainda hoje e por todo o mundo, velam para a realização do Direito e combatem as leis injustas. Quando todas as portas se fecham diante do cidadão anónimo a chamar por justiça, há ainda alguém disponível para escutar as suas razões e bater-se por elas”.

Há, porém, que reconhecer que a educação para a cidadania e o esforço isolado do advogado pode dar frutos, aqui ou ali, mas será sempre – se não acompanhado do esforço de outros – condição insuficiente para a promoção de desejada e efectiva igualdade de oportunidades. Não se esqueça que “…ser advogado é um dos mais nobres exercícios do direito de cidadania. O advogado é um combatente da liberdade e um lutador pelos direitos do cidadão”. Luta que é muita vezes perdida e será sempre interminável. Por isso é que muitas vezes desabafamos, nos momentos de impotência, de desânimo ou de derrota, queixando-nos que “a vida de advogado, entre a ingratidão dos clientes a quem nos dedicamos, a deslealdade dos colegas com quem esgrimimos e a incompreensão dos juízes com quem cooperamos, não é profissão é um inferno!”

Por isso, e por tudo o mais que se disse já, “(…) ser-se advogado implica uma grande responsabilidade social. (…) Um exemplo paradigmático está na defesa do princípio do acesso ao direito por parte de todos os cidadãos. Não é por acaso que são os advogados – e a respectiva Ordem, à cabeça, importa reconhecê-lo e sublinhá-lo - os primeiros a defenderem e a lutarem por um regime claro e exequível de acesso ao Direito”. Mas um regime claro e exequível de acesso ao direito está condicionado pela actuação do Estado, depende da assunção pelo Estado das suas responsabilidades.

Aqui ficam, pois, telegraficamente, três desafios para o século XXI: a (real e efectiva) possibilidade de consulta jurídica aos cidadãos do mundo; a (efectiva e digna) defesa oficiosa nos Tribunais e perante os Poderes e a Administração e a (permanente e eficaz) assistência jurídica aos privados de liberdade nas Prisões e nos Centros Educativos.

Três desafios à nossa inteligência, ao nosso empenhamento e à nossa capacidade de vergar o Estado a cumprir finalmente as suas obrigações no domínio do acesso ao direito. E três desafios que são específica e directamente dirigidos à Ordem dos Advogados, mais concretamente ao Conselho Geral para que lidere as alterações a sugerir aos Conselhos Distritais e às Delegações e, seguidamente, exija ao Estado a assunção das suas responsabilidades.

Não cumpriremos os nossos deveres, não honraremos a nossa responsabilidade social, se não formos capazes de auxiliar na instituição de novas regras de acesso ao direito. A Advocacia “é uma das profissões de dimensão humana à escala do próprio Homem, nas suas fraquezas e grandezas, na defesa do indigente, ou do criminoso, ou na protecção do indefeso perante a ditadura, mas sempre como profissão indispensável à garantia de uma das novas necessidades mais básicas, o direito à Justiça”.

Há que propor ao Estado que assegure a alteração, a apresentar urgentemente, do sistema, disperso e caótico, de gabinetes de consulta jurídica; instituindo uma real e efectiva possibilidade de consulta jurídica aos cidadãos do mundo, isto é a todas as pessoas que tenham de facto necessidade de apoio e informação e não têm capacidade económica para as custas.

Há que propor igualmente ao Estado o real apoio a uma efectiva e digna organização, e a garantia futura do respectivo e adequado financiamento, que assegure a defesa oficiosa nos Tribunais e perante os Poderes e a Administração. Diz-se que “…a advocacia é a única profissão em cujas regras está escrito que, para os seus seguidores, «o patrocínio gratuito dos pobres é um ofício honorífico»”. Podemos porventura não exigir tanto altruísmo e desprendimento material, se bem que as actuais tabelas pouco mais asseguram que o pagamento de despesas! E às veze3s nem isso!!! Mas, já o disse, e aqui repito, que a construção de uma sociedade livre, justa e solidária faz-se pelo cumprimento escrupuloso dos deveres de cada cidadão, pelo esforço de cada um de nós, e pelo esforço da Ordem com o esforço efectivo e leal apoio do Estado. E quantas vezes esse esforço não é suficiente ou não é suficientemente organizado, determinado e dirigido para o bem comum. A Ordem dos Advogados tem como atribuição primeira defender o Estado de Direito e os direitos e garantias individuais. É ao Conselho Geral a quem compete definir a política e a acção da Ordem dos Advogados perante os órgãos de soberania e da administração pública em tudo quanto se relacione com a defesa do Estado de Direito e com a salvaguarda dos direitos e garantias individuais e, por conseguinte, com o regime do acesso ao direito.

Há que propor, também, uma estrutura mínima, permanente e eficaz de assistência jurídica aos privados de liberdade nas Prisões e nos Centros Educativos, sem o que a informação e a assistência jurídicas não passarão de belas proclamações sem eficácia nem consistência. É que “...diga o que disser a inveja ou a malignidade, há virtude em descer aos calabouços para aí levantar a esperança dum acusado, e levar-lhe consolação. É verdade que se essa é a parte mais penosa da nossa profissão, é também a mais honrosa...”. E por isso se diz que “o que há de melhor no advogado é que ele nos aparece quando os outros nos fogem.”

E se é tarefa fundamental do Estado garantir os direitos e liberdades fundamentais, defender a democracia política, promover enfim a cidadania, o desenvolvimento, a participação e a igualdade, não podemos descurar aqui a responsabilidade de cada um de nós quer isoladamente quer institucionalmente para afastar de vez, pelo menos um aspecto da malfadada crise da justiça.

O total dos processos pendentes nos últimos vinte anos quadruplicou. Os magistrados judiciais pouco mais do que duplicaram. O número de advogados aumentou exponencialmente. O número total de arguidos quintuplicou. A litigiosidade e sua complexidade explodiram. A média de reclusos é, em Portugal, país de reconhecidos brandos costumes (!), muito superior à europeia. A sobrelotação nas cadeias ultrapassa limiares de suportabilidade. E, no entanto, em termos comparatísticos, a criminalidade violenta ainda está longe de atingir, em Portugal, as cifras negras das grandes metrópoles ocidentais. Os cidadãos adquirem maior consciência dos seus direitos e deveres, num mundo que já se disse estar em “perpétuo movimento”, mas que adquiriu uma aceleração jamais vista. A par dessa consciência cresce também a cultura cívica, também chamado exercício de cidadania, num ambiente que a liberdade política torna viável. Até aqui tudo bem.

Como dizia o nosso Bastonário Rogério Alves, chegou-se a um ponto de descrédito e desconfiança tal que há que perceber a situação presente da justiça em Portugal. Muitas vezes confunde-se justiça com tribunais. E como se disse já a justiça não é um desígnio exclusivo dos tribunais…é tarefa comum do parlamento, do governo, do poder local, da administração central e das polícias…e também dos cidadãos. Mas quando se fala da crise da justiça pensa-se de imediato nas instituições judiciais e na administração em sentido estrito da justiça.

Daí as polémicas que mais recentemente têm estado na ordem do dia. São os invocados problemas do governo e da legitimidade dos juízes, ou do ataque à sua independência, do desgoverno das polícias, do excesso ou do desvio de poderes do Ministério Público, da falta de intervenção corajosa da advocacia, da morosidade da justiça; são enfim questões como a da reforma penal. Aliás, as alterações aos códigos penal e de processo penal têm causado uma polémica inusitada, despropositada e só explicável pela aversão à mudança, pela incompreensão pelo legítimo exercício de direitos e garantias processuais e pelo horror à exigência e ao cumprimento de prazos. Menos conversa, pois, e mais e melhor trabalho.

Rios de tinta correm e muito se fala sobre as crises da justiça. A maior parte das vezes precipitadamente. Sempre ou quase sempre pela rama, muitas vezes sem razão, algumas mesmo interessada e malevolamente. O diagnóstico da justiça e do funcionamento da máquina judiciária é essencial antes da tomada de qualquer atitude reformista ou mesmo revolucionária. E a terapêutica não passa pela simplificação a todo o custo, pela celeridade sem mais, pela diminuição das garantias do cidadão.

Sempre que se fala em justiça, é para falar de crise. Curiosamente, porém, pouco se fala da fortíssima responsabilidade do poder político, nas suas vertentes executiva e legislativa, nesta crise. Muitas das afirmações sobre o estado de justiça que têm vindo a lume, assentam num comprometedor erro de análise: a ideia de que os agentes da justiça criam o sistema de justiça e nele operam como entendem. Em regra, o governo e o parlamento saem absolvidos no julgamento do estado de justiça. Mesmo os partidos da oposição, na sua missão de criticar o governo, cingem-se a epifenómenos, que podem ser importantes, mas não são seguramente estruturantes. Recordemos as guerras públicas nas secretas, a turbulência na polícia judiciária, a independência da judicatura ou o impacto político da reforma penal. Quando dos discursos sobre o estado da Nação, o ministro que está alegra-se porque houve menos crimes de esticão, e o que gostava de estar estica os outros crimes, para provar que o país está inseguro, faltam polícias e sobram ladrões. Mas do poder político, quer do legislativo, quer do executivo, há que esperar muito mais. Não está em causa – obviamente – a tradicional separação de poderes: Deus nos livre. A separação de poderes concede ao poder judicial plena liberdade de julgar. Mas não retira ao poder político, no qual se incluem os dois restantes do trio tradicional, o dever de criar os direitos, regular o respectivo exercício e disciplinar a actividade dos seus agentes. E é aqui que o poder político tem falhado. Mas isso fica para uma próxima conversa, porque o tempo já vai longo. E mais que do monólogo é do diálogo que se faz luz!

Este é o repto aos órgãos eleitos da Ordem. Esta é a nossa responsabilidade social. Este será o nosso contributo para o exercício da cidadania. E um passo, um pequeno passo, na promoção da igualdade. Até para que, como Eça, não se diga também, em relação à Cidadania, à Justiça e à Advocacia, e quase 137 anos (!!!) depois que «o país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se que por toda a parte: o país está perdido!». Estará também assim a justiça? A resposta só depende de nós.
De cada um de nós. De todos nós

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